O Neo Paganismo: de um objeto de pesquisa à religião a ser pesquisada



            Weber já dizia que uma religião só torna-se religião na medida que ela passa a ser pensada como tal, entendida como tal, ou seja, quando começa-se a defini-la. Podemos entender o chamado neo paganismo[1] e sua transformação, pelo menos em algumas vertentes mais famosas, como o nascimento de uma nova religião. Se observarmos por exemplo, o caso da Wicca, a religião criada na Inglaterra do pós-guerra pelo funcionário público aposentado Gerald Gardner, veremos que ao mesmo tempo que os adeptos vão dando um sentido a sua religiosidade, a Wicca também vai sendo pensada por sociólogos, historiadores, etc. Enfim, a Wicca vai se tornando uma religião, pelo menos como veremos, na Inglaterra e América do Norte.
            Daremos destaque à Wicca, pois como descreve Barbara Jane Davy (2007, p.5) no livro Introduction to pagan studies, a Wicca é a mais proeminente denominação do paganismo entendida como uma religião distinta dentro desse “guarda-chuva” neo pagão.
            Desde que surgiu na década de cinqüenta, mas principalmente quando conseguiu uma certa fama na de sessenta, a Wicca vem sendo cada vez mais estudada. Em seus primeiros anos, o foco das discussões eram relativos a própria noção de um culto de bruxas, já que Gardner afirmou ter sido iniciado num coven[2]. Essas primeiras investidas contra a Wicca vinham no sentido de provar sua falsidade, a idéia era desmascará-la. Para entendermos melhor esse ataque, é necessário fazermos uma breve menção as bases que influenciaram a criação da Wicca. Primeiramente Gardner acreditava nas teorias de cultos de fertilidade pré-cristãos da egiptóloga Margaret Alice Murray, que por sua vez era discípula de Sir James George Frazer o famoso antropólogo que escreveu um dos livros fundamentais sobre a distinção entre magia, religião e ciência, o Ramo de ouro, que depois vai ser alvo de uma reinterpretação surpreendente por parte dos bruxos modernos. Por fim ainda tem o livro do poeta Robert Graves, A Deusa Branca, que Gardner utilizou para sua “Tealogia”[3] fazendo referencia a obra de Graves em seu famoso livro “O significado da bruxaria”.  Na verdade Gardner fez um misto de várias fontes para criar a Wicca, sendo as principais estas três. E é em cima dessas fontes, principalmente no que se refere ao culto das bruxas descrito por Murray que a Wicca recebe suas primeiras criticas acadêmicas. O primeiro acadêmico a fazer uma critica à idéia de culto ou antiga religião é Elliot Rose[4], que já na década de sessenta se propõe a debater as conclusões de Murray e a Religião de Gardner. Seu livro “A razor for a goat” torna-se um marco nesse debate. Esse trabalho de Carlo Ginzburg, um expoente da micro história italiana que também irá dialogar com Murray na questão dos cultos agrários, em vista de seu objeto de pesquisa, que são os benandantis, os combatentes de bruxas da região do Friuli que foram considerados hereges pela Igreja.  Na década de setenta e oitenta começam a surgir nos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra as primeiras pesquisas com grupos neo-pagãos. Neste ponto devemos adentrar na questão das diferenças entre Neo Paganismo e Nova Era. No Brasil as pesquisas tendem a englobar as duas formas de religiosidade num mesmo universo, como se fossem sinônimos. Mas existe um esforço entre os que defendem as diferenças para o fato de que existem pontos de convergência e divergência entre os dois conceitos. É importante adentrarmos nessa questão pelo simples fato de que o Neo paganismo começa a aparecer e ser definido fora de seu próprio ambiente em enciclopédias de Novas religiões ao lado de verbetes como Nova Era. A associação de um termo com outro não está ainda delineada ou refutada de forma definitiva, pelo contrário ainda há os que defendem uma aproximação entre as duas formas de religiosidade. Dentro desse debate o livro do sociólogo Michael York, “The emerging network”, é sem dúvida um dos mais esclarecedores. Neste estudo de fôlego o autor tem como objeto de pesquisa exatamente o Neo Paganismo e a Nova Era. Seu trabalho consiste em encontrar os pontos de convergência e divergência dos conceitos. Para entendermos melhor essa distinção e avançarmos em nossa analise de entender como a Wicca tornou-se uma religião distinta a partir do momento que passou a ser estudada, vale a pena destacarmos alguns apontamentos de York sobre essa as diferenças e similaridades. A primeira diferença estaria na questão da metáfora feminina. Para o Neo paganismo o feminino é mais telúrico, natural, como uma identidade cósmica. A Deusa é presença certa na Wicca, como divindade principal, mesmo tendo seu consorte, o Deus ao lado. Na Nova Era, este feminino é algo interior, tanto na mulher quanto no homem, isto não implica necessariamente que para os new agers não há uma realidade sobrenatural como uma entidade. A similaridade entre as duas formas está na questão da necessidade de conexão com o feminino, ambos possuem o discurso de que o feminino foi de certa maneira suprimido. Na questão do outro mundo, o neo paganismo de modo geral é mais propenso a acreditar numa conexão ativa com uma outra realidade (outro mundo) através de transes e no caso da bruxaria, o vôo da alma. É uma experiência direta com o sobrenatural, acredita em seres mágicos como parte da realidade. Já os new agers a visão do outro mundo seria mais passível, revelado através da meditação, comunicação com os mortos, memórias de vidas passadas, experiências de quase-morte, etc. As similaridades mais latentes entre ambos seria o eco-humanismo; a crença na divindade como algo intrínseco ao individuo, um “Deus ao meu modo”; ambos exploram divindades metafóricas que não estão tradicionalmente associadas com o universo judaico cristão; ambos são a favor de uma consciência ecológica e fazem disso sua principal bandeira no campo político; no nível individual, o foco é no crescimento pessoal; ambos tem uma postura critica à autoridades religiosas; e por fim o mais relevante, ambos possuem sistemas de crenças difusos. Essas são apenas algumas similaridade e convergências que York vai desenvolver ao longo de seu livro. O que nos interessa é sabermos que aos poucos o neo paganismo e principalmente a Wicca vão deixando de ser vistos como parte da Nova Era e sendo pensadas como religião distinta. Um trabalho importante para essa diferenciação, no caso da Inglaterra foi sem dúvida o clássico “Persuasions of the witch’s craft da antropóloga T.M Luhrmann na qual a autora literalmente se infiltrou num coven de bruxas, para estuda-los e depois de ter sua pesquisada publicada foi criticada pelos membros do tal coven que se sentiram ofendidos e enganados pela antropóloga. Independentemente o trabalho de Luhrmann que tenta responder a seguinte questão: Porque pessoas instruídas recorrem a magia? Resultou numa hipótese de distinta do que se entendia até então sobre magia e religião, pelo menos no que se refere a uma diferenciação entre as duas, já que nas teorias clássicas, como de Frazer, Durkheim e Mauss, a presença de uma praticamente anula a outra. Luhrmann descreve que a distinção entre magia e religião no caso da wicca e neo paganismo caem por Terra já que a a magia é algo que está presente na Wicca, eles vem a magia como parte de sua religião e não como algo diferente da religião ou oposto à religião. Siân Reid p.143, 1996)  no livro Magical Religion and Modern Witchcraft descreve que essa questão da diferenciação é até mesmo vista pelos neo-pagãos como algo pejorativo a sua crença já que os estudiosos sempre tenderam a coloca-la como algo menos importante como ferramenta pratica que funcione na obtenção de determinado fim prático. Nessa linha Reid ainda descreve numa analise antropológica como essa visão distinta entre magia e religião chegou até nós e é repetida até hoje, para isso cita exemplos como a diferenciação feita por Stark e Bainbridge no campo da escolha racional, definindo recompensas e compensadores. Aqui vale voltarmos a questão das bases que influenciaram a Wicca. Como havíamos mencionado, Frazer colocou a magia como algo primeiro e a ciência como algo último e racional. O neo paganismo e wiccanos não encontram problema nessa definição e reinterpretaram Frazer a seu favor. Em uma palestra que ocorreu num grande encontro sobre Wicca e Neo paganismo em São Paulo[5], uma das conferencistas falava sobre a história do culto a Deusa e mencionou Frazer e seu trabalho, dizendo que o antropólogo ao propor essa distinção estava de certa maneira atribuindo-lhe um grande valor a magia, pois esta seria a forma mais primitiva e natural, portanto mais perfeita de se vivenciar a religião, não é a toa que a Wicca, ou Arte, também é conhecida como a “Antiga Religião”. Claro que não há nenhuma referencia de que Frazer tinha em mente distinguir magia de religião e ciência no sentido de atribuir a primeira a forma mais perfeita de se vivenciar a religião.
            Até agora vimos o estudo da Wicca no campo da antropologia e sociologia, vale dizer que muitos estudos sobre a Wicca ou outras vertentes neo pagãs foram feitas por adeptos e alguns pesquisadores, principalmente antropólogos tornaram-se wiccanos.
            No que se refere a questão histórica, a Wicca passou a ser vista pelos adeptos tendo um mito fundacional, mas até chegar a idéia de mito houveram muitas divergências, que não se sessam de maneira absoluta até hoje. Primeiramente vamos destacar dois trabalhos importantes. O primeiro é o livro do historiador britânico Ronald Hutton, “Triumph of the moon, a history of modern witchcraft”, o outro são os trabalhos do escritor Philipe Heselton, “The caudron of inspiration” e ‘Wiccan Roots”, ambos trabalhos são recentes, não mais que 15 anos. Heselton descreve a História da Wicca mas seu foco é a biografia de Gardner. Hutton possui um trabalho mais de peso, e chega a conclusão de que a Wicca é a religião mais famosa da Inglaterra, e a única que efetivamente o Reino Unido deu ao mundo. Mas o que é mais interessante é que os autores discutem sobre a existência ou não de um culto de bruxas na qual Gardner foi iniciado. Outro trabalho importante é o livro de Aidan Kelly, “Inventig the witchcraft”, que antes do trabalhos citados já colocava um ponto final na discussão, a Wicca foi uma criação da cabeça de Gardner e ponto final, para isso Kelly se valeu do chamado “livro das sombras” de Gardner, analisando-o ponto a ponto e mostrando que o que estava escrito ali era na verdade um amalgama de vários elementos que estavam presentes no ocultismo inglês, maçonaria, teosofia, etc. Os autores que escrevem sobre as influencias de Gardner posteriormente a essas obras vão apenas repetir sem muitos acréscimos o que já foi estudado. Sendo assim a história da Wicca vai passando de algo que se não pode ser sustentado então torna-se metáfora.
            Nos últimos anos tem se desenvolvido um campo de estudos especifico dentro do universo acadêmico, principalmente no Canadá e Estados Unidos chamado Pagan Sutdies, nesse campo vale destacar as publicações e o trabalho de Chas Clifton, editor de uma coleção sobre as pesquisas nesse campo, mostrando que não apenas os adeptos enxergam a Wicca como uma religião, mas também os acadêmicos e intelectuais também já caminham nessa direção.
            Para concluirmos, nos parece que, observando a idéia de Weber, uma religião começa a ser uma religião quando ela é pensada como uma, quando há interessados em escrever sobre ela.


BIBLIOGRAFIA:

DAVY, Barbara Jane. Introduction to pagan studies. Lanham, MD, USA: Altamira Press, 2007.

REID, Siân. As I Do Will, So Mote it Be: Magic as Metaphor in Neo-Pagan Witchcraft. In: LEWIS, James R. (ed.) Magical Religion and Modern Witchcraft. Albany, USA: State University of New York, 1996.

YORK, Michael. The emerging Network, A sociology of the New Age and Neo Pagan Movements. USA: Rowman & Littlefield Publishers, INC, 1995.


[1] “Neo paganismo” é um termo utilizado para definir as chamadas religiões “reconstrucionistas”, que idealizam concepções e conceitos de um passado distante, geralmente definidos como religiosidades pré-cristãs. O prefixo “neo” foi utilizado pela primeira vez num sentido esotérico por Oberon Zell Ravenheart, fundador da Church of all worlds, uma espécie de organização religiosa, e também editor de uma publicação pioneira, a ‘green egg”, que consistia numa revista sobre assuntos relacionados a Nova Era, paganismo e magia. Muitos autores neo pagãos atentam para o fato de que esse termo é como um guarda chuva, englobando várias vertentes.
[2] Coven, é o termo utilizado para definir um grupo de bruxas, geralmente em número de 13 segundo o próprio Gardner. O coven que Gardner foi iniciado é o de New Forest na região de Hampshire na Inglaterra. Há muita controvérsia sobre essa iniciação.
[3] Tealogia, termo utilizado em oposição a Teologia, seria a forma feminina do último, tendo por base a idéia de uma Deusa. Esse termo passou a ser mais freqüente no universo neo pagão depois que a Wicca ganhou seus contornos feministas dentro do contexto de contra-cultura americano na década de 70.
[4] Jean Delumeau em seu livro “História do medo no Ocidente”, dedica um capítulo inteiro ao debate sobre a existência de um cultos das bruxas na Europa e cita em linhas gerais os argumentos de Rose contra Murray.
[5] Nos referimos à sexta edição da CWED (Conferencia de Wicca e Espiritualidade da Deusa) que aconteceu entre os dias 11,12 e 13 de junho de 2010 na cidade de São Paulo

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