Hermes na Acadêmia - O Esoterismo na Universidade

Não é a primeira vez que escrevo neste blog sobre a trajetória de um campo acadêmico novo. Sempre me envolvo com esta questão pois tento seguir uma linha de pesquisa praticamente inexistente no Brasil, o “pagan studies” o qual tenho profunda admiração. Já descrevi em outro post sobre a afirmação desse campo. Ainda falta muita informação que aos poucos também vou lendo a respeito. Minha área de pesquisa é em Ciências da Religião, outro campo que podemos dizer, que apsear de suas décadas, ainda se vê tendo que mostrar-se capaz de ser uma ciência autônoma. Recentemente li o livro Hermes in the Academy: Ten Years’ Study of Western Esotericism at the University of Amsterdam, Pijnenburg e Hanegraaff (Hanegraaff dispensa apresentações) que conta a História do Hermetismo como área acadêmica. Acho que a melhor forma de apresentar este campo fascinante é postar o artigo de abertura do livro assinado por um dos responsáveis dessa cadeira hermética, Roelof van den Broek. Vale dizer que um dos pesquisadores desta cadeira da Universidade de Amsterdã é Kocku von Stuckrad que já citei em outro artigo aqui no Blog e que tem um livro excelente sobre História da Astrologia publicado no Brasil pela Editora Globo. Confira na íntegra como o Hermetismo e as tradições esotéricas passaram a fazer parte do mundo acadêmico.

O nascimento de uma Cadeira
Roelof van den Broek
Tradução: Celso Luiz Terzetti Filho

Antes de 1999, era impossível estudar filosofia hermética em uma universidade holandesa. Filosofia hermética e misticismo cheirava à um mundo pré-ilumista e, ainda pior, à Nova Era, para ser atraente para os filósofos acadêmicos, e muito menos ainda para dar-lhes um lugar nos seus programas de ensino. Esta foi uma experiência decepcionante para a Sra. Rosalie Basten, que estudou filosofia na Universidade de Amsterdã em 1980 e que depois de concluir os estudos quis se especializar neste ramo especial da filosofia mística. Mas às vezes a frustação com uma situação existente, tornar-se um incentivo para alterá-la. Com a Sra. Bastem surgiu a ambição de estabelecer uma cadeira de História da Filosofia hermética em uma das Universaidades holandesas ou belgas. No entanto, “entre o sonho e a ação, as leis ficam no caminho, das práticas”, como descreve uma famosa poesia holandesa, e de fato esse sonho não foi fácil de ser realizado, especialmente nos círculos acadêmicos, onde a antipatia comum contra o esoterismo e o ocultismo tornava quase inconcebível que alguém pudesse estudar modernas tradições herméticas e esotéricas sem ser um ocultista. Mas no verão de 1997, a Sra Basten sentiu que o tempo estava a bom para uma proposta concreta e definitiva para um Universidade Holandesa. Naquele tempo, a expressão “filosofia hermética” e “tradições herméticas” começavam a significar algo para oi público holândes e aos políticos, porque a ameaça de uma dispersão da famosa Biblioteca Philosofica Hemetica, fundada pelo Sr. JR Ritman estava atraindo muito a atenção na mídia popular. No entanto, a Sra Basten, também percebeu que os conselhos universitários estavam dispostos a aceitar financiamento externo para uma cadeira apenas se a proposta de programas de ensino e pesquisa mostrassem atender os padrões de qualidade acadêmica, com um excelência e independência, e que preenchessem uma lacuna evidente no atual currículo. Neste ponto é que me envolvi com a história. A Sra. Basten sabia da minha existência através da tradução holandesa do “Corpus Hermeticum” que Gilles Quispel e eu tinhamos publicado em 1990. Ela esperava que eu estivesse interessado em seu plano e que poderia ajuda-la na realização do mesmo. Em nossa primeira reunião, em Antuérpia, ocorrido em 23 de julho de 1997, ela explicou suas intenções e me pediu para ajuda-la. É claro que eu aceitei o convite, porque seu projeto ofereceu uma oportunidade única para avançar o estudo de uma importante corrente na cultura ocidental, que foi largamente negligenciada no ensino e investigação academica. A reunião em Antuérpia tinha sido organizada pelo acessor jurídico da Sra Basten, Willem A. Koudijs, que estava a desempenhar um papel importante nas negociações e nas documentações legais que viriam a seguir. Olhando para trás, só me resta concluir que nós três formamos uma equipe perfeita. Rosalie foi a inspiração e a força motriz por trás de toda essa empreitada, ela não só teve a visão, mas também as idéias e concretizações práticas, bem como os meios financeiros para realizálos. Como sócio sênior em uma firma de advocacia holandesa, Willem era bem versado na realização de complicadas negociações e elaborações de documentos legais. Quanto a mim, como prfoessro de longa data e ex-reitor da faculdade, eu conhecia muito bem o sistema universitário holândes, meu curriculo academico não era ruim, sendo assim a Universidade me levaria a sério. Estavamos decididos a tomar medidas imediatas em duas frentes: Mr. Koudijs viria com um primeiro projeto de artigos da Fundação que deveria ser estabalecida, eu deveria tentar manter contato com a Universidade de Amsterdã para descobrir se eles estariam interessados nessa cadeira.  A preferêrencia na Universidade de Amsterdã foi principalmente devido a existência de vários livros, coleções e publicações sobre hermetismo e assuntos relacionados naquela cidade.
 Já em 12 de agosto de 1997, fui recebido pelo Sr. KJ Gervers, presidente do Conselho de Administrativo da Universidade de Amsterdã. Ele mostrou-se muito interessado no projeto, especialmente quando soube que nosso objetivo era nomear um professor que estaria a disposição em tempo integral com dois assistentes qualificados. Quando eu expliquei que nossa única intenção era puramente a pesquisa acadêmica, sem qualquer motivo “oculto”, ele sugeriu que optassemos por uma cadeira comum. Isto implicaria que o professor e sua equipe (em holândes, “leerstoelgroep”, “grupo de cadeira”), embora financiados por uma instituição externa, ficarão sob a responsabilidade e supervisão da universidade e estarão sujeitos a todos os regulamentos normais. Sua idéia era que essa abordagem iria facilitar a plena integração do grupo e aceitação por parte da recém criada Faculdade de Ciências Humanas. Mais tarde, em outubro de 1997, ele repetiu essa sugestão numa discussão com o Sr. Koudijs, mas nessa altura ainda não estávamos convencidos de que seria a direção certa para tomarmos. Entendemos que, se fossemos para uma cadeira comum arranjos complicados teriam de ser feitos e que exijiriam  negociações prolongadas, e que no final a universidade teria uma grande influência sobre a cadeira, muito maior do que tinhamos em mente desde o ínicio. Por estas razões, também considerou-se seriamente a possibilidade de um modelo simples e extraordinário de cadeira. Mas nós finalmente decidimos aceitar o conselho inicial de Mr. Gevers.
Ainda em agosto de 1997, o Sr. Koudjis apresentou um primeiro projeto de artigos da Fundação, que discutimos em 5 de setembro. Havia muita indecisão naquela época, mas o progresso que estávamos fazendo era refletido em versões revistas que foram produzidas durante os próximos meses. Estes esforços levaram finalmente ao estabalecimento oficial da “Cadeira de História da Filosofia Hermética e Correntes Correlatas” (N. T, o nome da cadeira em inglês na verdade é “Foundation Chair of History of Hermetic Philosophyand Related Currents”), em 20 de fevereiro de 1998. A Sra. Basten, o Sr. Koudijs e eu formamos o primeiro Conselho de Administração da Fundação (cadeira). Nesse contexto nossa atenção volta-se para dois aspectos dos artigos. O primeiro é a estipulação expressa no artigo 2.1, onde se diz que o principal objetivo da Fundação é “aprofundar o estudo da Filosofia Hermética e correntes afins, independente de qualquer visão de vida (convicção) (iedere van onafhankelijk levensbeschouwing). Naturalmente, independencia academica é uma condição insdispensável em todas as pesquisas acadêmicas, mas neste caso achamos prudente mencionar explicitamente nos artigos da Fundação. A fim de evitar qualquer suspetia de que a cadeira pode ser a fachada de uma missão esotérica disfaraçada, também se estipulou que a Universidade de Amsterdã tem o direito de nomear dois membros do Conselho da Fundação (art. 4.3). Estye termo entrou em vigor no dia 27 de maio de 1999, com a nomeação do Sr. Frans  Ch. M. Tilman, um perito financeiro e o Dr. J. Sybolt Noorda que naquela época era presidente do Conselho Administrativo da Universidade de Amsterdã. O segundo aspecto que merece atenção é que os artigos definem explicitamente o objetivo principal da cadeira como “o estudo da Filosofia Hermética e corrente correlacionadas”, o que implica que de fato a tradição ocidental esotérica pertence a toda a área de pesquisa da cadeira.
As negociações  com a Universidade de Amsterdã e os regulamentos financeiros que tinham de ser feitos se desenrolaram por todo o ano de 1998. Como já foi dito, optamos finalmente por uma cadeira comum na Universidade de Amsterdã, que de fato reduziu a Fundação para a posição de patrocinador externo. A Fundação foi (e ainda é) capaz de financiar um professor em tempo integral, dois professores assistentes, dois doutorandos e um secretário. Embora o fenômeno de uma cadeira com financiamento externo não era completamente desconhecido, naquele momento a universidade não tinha nenhuma experiência com a integração de um grupo completo – na verdade um instituto completo de pequeno porte – no sistema acadêmico. Em discussões com o então decano da Faculdade de Ciências Humanas, professor Karel van der Toorn e seu diretor financeiro, Wim KB Koning, os principais contornos foram definidos. Muitos problemas tiveram que ser resolvidos, mas as negociações evoluíram em um ambiente amigável, levando a um acordo assinado oficialmente em 12 de novembro de 1998. Este acordo que ainda satisfaz ambas as partes foi concluído principalmente graças aos esforços e habilidades do Sr. Koudijs e do Sr. Koning.
No entanto, a criação de um grupo de cátedra por si só não é uma garantia de êxito: muito depende da qualidade de sua investigação e ensino. Percebemos que era absolutamente necessário para o grupo, desenvolver uma visão clara do tipo de pesquisa e programa de ensino que ia ser realizado. Por esta razão, nós organizamos uma pequena conferência brainstorming em Beaulieu, França entre os dias 18 e 20 de Janeiro de 1998. O mais proeminente estudioso convidadofoi o professor Antoine Faivre, que ocupou a cadeira de “História das correntes místicas e esotéricas na Europa Moderna e Contemporânea” na Ecole Pratique des Hautes Études (Sorbonne), Paris. Naquela época, sua cadeira foi a única em todo o mundo que era compátivel à cadeira prevista, o que fez seus conselhos muito valiosos. Outros convidados para a conferência foram Jean-Pierre Brach, encarregado das conferências na EPHE e um especialista no esoterismo do ínicio do período Moderno; Wouter J. Hanegraaff, que conduziu pesquisas de pós-doutorado sobre correntes esotéricas modernasna Universidade de Ultrech;  Cees Leijenhorst, um especialista em Filosofia Moderna que tinha publicações sobre Hermetismo Renascentista; e eu, um especialista em Gnosticismo antigo e Hermetismo. A composição do grupo não foi aleatória, no mesmo período, Faivre, Hanegraaff, Brach e Van den Broek também foram envolvidos nos preparativos inicias do Diciona´rio de Gnose e esoterismo ocidental (Leiden: Brill, 2005). Através deste trabalho já tínhamos uma boa visão da hsitória do esoterismo ocidental como um todo, desde a Antiguidade até o presente, e dos estudiosos que estavam perseguindo estudos sérios nesta área. A conferência resultou em três recomendações, as quais foram aprovadas. A primeira foi que a investigação e o ensino focariam o período do ínicio do Renascimento até os dias atuais, é claro, sem ignorar as fontes do esoterismo nas corrente herméticas, gnósticas e afins da Antiguidade e da Idade Média. No que diz respeito ao programa de ensino, a conferência decidiu juntar esforços nos cursos de bacharelado e mestrado, pois só assim a cadeira poderia ser efetiva e eficaz. A terceira recomendação era negociar com a Universidade sobre a integração da cadeira na Faculdade de Ciências Humanas, tanto quanto possível, porque isso tornaria mais fácil a realização de um programa de ensino integral.
Logo após o acordo assinado com a Universidade o decano da Faculdade de Ciências Humanas autorizou um comitê de seleção e teve de nomear um candidato para a cadeira. A maioria dos membros deste comitê, composto por seis pessoas, foram indicados pela Universidade, representando a Fundação só havia eu. Através de avisos em dois jornais holandeses e e-mails enviados para estudiosos e redesa acadêmicas em todo o mundo, interessados foram convidados a se inscrever. O comitê realizou entrevistas com três candidatos qualificados e, finalmente, decidiu nomear o Dr. Wouter J. Hanegraaff. Ele foi oficialmente nomeado pelo conselho de administração da Universidade em 15 de julho de 1999. Ao longo do ano 2000, o corpo docente da cadeira foi formado, com a nomeação de dois professores adjuntos: Dr. Jean-ierre Brach (Renascimento e período Moderno) e Dr. Olav Hammer (século XiX e XX). Um novo campo de ensino e pesquisa acadêmica nasceu tornando-se parte do sistema acadêmico.
Dez anos depois, só podemos concluir que a empreitada tem sido bem sucedida. Inicialmente, como o acordo entre a Fundação e a Universidade de Amsterdã tornou-se pública, algumas vozes céticas foram ouvidas, até mesmo dentro de nosso ambiente escolar. Mas não demorou muito para que essasvozes fossem silenciadas pela alta qualidade da produção acadêmica da cadeira. Dentro de uma década, a cadeira passou a ter um excelente nível e reputação nacional e internacional. Tornou-se um dos centros mais importantes do mundo no campo da investigação histórica acerca dos estudos herméticos e esotéricos e provou ser muito produtiva com publicações de alto nível atraindo estudantes do mundo inteiro. O professor e seu primeiro assistente mostraram-se estudiosos de grande qualidade: Olav Hammer é agora professor de História da Religião na Universidade do Sul da Dinamarc, em Odense. Jean-Pierre Brach é professor de História das Correntes Esotéricas da Europa Moderna e Contemporânea na Ècole Pratiques des Hautes Etudes in Paris, como o sucessor de Antoine Faivre, e Wouter Hanegraaff foi eleito membro da prestigiada Academia Real Holandesa de Artes e Ciências em 2006, algo que não foi apenas uma honra pessoal, mas também uma evidência clara de que o estudo do esoterismo ocidental tornou-se uma disciplina acadêmica aceita. Em retrospecto, pode-se dizer de fato que em 1997 o momento era propício, pois todas circunstâncias foram favoráveis: Em uma crescente atmosfera de crescente interesse público nos fenômenos do Hermetismo e Esoterismo Ocidental, a Sra. Rosalie Basten sentiu que tinha chegado o momento de realizar o seu ideal de uma cadeira acadêmica para o estudo do Hermetismo e das tradições esotéricas, ela montou uma equipe capaz, se me permitem dizer, capaz de trazer os seus planos para a prática. A Universidade de Amsterdã, de imediato percebeu a importância desta iniciativa e foi muito útil para estabelecer a cadeira, e para lá foram muitos estudiosos competentes que tornaram a cadeira um sucesso desde o seu início. Mas nada disso teria acontecido se a Sra. Basten não tivesse tomado a iniciativa. Ao fundar a “Cadeira de História da Filosofia Hermética e Correntes Correlatas” ela prestou um serviço inestimável para o desenvolvimento de uma jovem disciplina acadêmica, e por isso ela merece a gratidão de todos os estudiosos envolvidos.

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