A Magia na Antiguidade. Entrevista com Maria Regina Cândido


Entrevista feita por Sérgio Pereira Couto e originalmente publicada na Revista "Leituras da História" Ed. Escala, número 27. -  2010.

ANTIGAS TRADIÇÕES 
MÁGICAS DOS DIAS MODERNOS
Oferendas, benzeduras e vudus, estes são apenas alguns dos hábitos adquiridos de civilizações antigas que chegaram até nós. Mas a sua origem  e verdadeiro propósito? Conheça nesta entrevista exclusiva com Maria Regina Cândido, da UFRJ, uma das maiores especialistas sobre o assunto.

L.H - O que leva um historiador a se interessar por um tema tão polêmico quanto a magia no mundo antigo?

MRC  - O tema magia está relacionado ao conceito de religião e, em meio ao interesse pelo tema e ao debate no mundo atual, percebemos o quanto essa relação está tempestuosa. Interessa-nos identificar o lugar de fala da religião, da superstição e das práticas mágicas junto à emergência do pensamento racional no universo grego. Diante desse fato nos questionamos de que forma e como reagiram quando consideraram que parte da população estava se apropriando desses mesmos ritos, dos deuses e lugares sagrados para cultos mágicos que visavam interesses ocultos e privados. No nosso caso, nos interessamos pelas críticas do poeta Eurípedes e do filósofo Platão, que questionam as práticas mágicas emergentes na sociedade dos atenienses nos séculos V e IV a.C. E, por outro lado, torna-se apaixonante perceber as táticas dos usuários da magiaque junto com o feiticeiro subvertem a ordem estabalecida para fazer mal ao inimigo de maneira oculta, enterrando nos cemitérios pedaços de roupa, unha e cabelo do inimigo de forma a prejudicá-lo sem que ele saiba que está sendo vítima de maldição.

L.H - Dentre as civilizações mais antigas, qual é a que mais fez uso de magia em seu dia a dia?


MRC - A magia é uma prática ritualista presente em todas as sociedades do mundo antigo como a dos babilônios, a dos trácios,  a dos egípcios, a dos gregos e romanos. Os povos antigos eram comunidades agrárias, fato que os coloca em contato próximo a natureza e na sua dependência. Tinham uma relação com os fenômenos da natureza muito próximo da base do custo benefício, ou seja, faziam rituais e oferendas e recebiam as dádivas e desejos realizados, uma forma de amenizar o temor diante do desconhecido. As sociedades antigas praticavam a magia para conseguir melhores colheitas, para a fertilidade dos animais domésticos e das mulheres, visando o nascimento de crianças saudáveis do sexo masculino. Entretanto, chama-nos a atenção a emergência entre os gregos do V e IV século para o uso do que podemos identificar o inimigo de uma maneira específica, ou seja, o usuário da magia procurava um mago especialista na magia do defixios e solicitava a inscrição do nome do inimigo na superfície de uma lâmina de chumbo. Em seguida, ambos, solicitante e o feiticeiro, colocavam a lâmina de chumbo denominado de desfixios, na sepultura de um morto recente, vítima de assassinato ou suicida, e aguardava o resultado: fracasso do inimigo ou a morte. Segundo Platão, esta magia era eficaz pois a vítima em geral ficava incapacitada ou morria. Considero os gregos como um dos maiores praticantes de magia, visando prejudicar o inimigo por meio dos desfixios ou katadesmos, pois não conseguimos identificar essa prática em nenhuma sociedade antes do período de Péricles em Atenas que se estende aos romanos e suas áreas de influência no Mediterrâneo, como os habitantes da Península Ibérica e nas áreas da Bretanha.

 figura de um desfixio

L.H - Sob seu ponto de vista pessoal, acredita que a crença na magia é parte do processo de desenvolvimento de uma civilização?

MRC - A visão de que a magia faz parte de um processo evolutivo da humanidade integra a chamada teoria da secularização. O paradigma tem como matriz o século das luzes com Voltaire e Montesquieu, e se estende ao século XIX com Comte, Marx e Weber. Eles preconizam que magia é o estado primitivo da religião e que ao chegar a modernidade, os seres humanos não teriam mais necessidade das crenças mágico-religiosas, pois reinaria o império da ciência. E, claro que a teoria não se concretizou, pois percebemos na atualidade a emergência de vários cultos mágico-religiosos, uma acentuada necessidade de contato com forças sobrenaturais, jamais vistas na humanidade. O cenário religioso no Ocidente aponta para um mundo muito mais plural diante da multiplicidade de crenças, ritos e cultos que se apropriam de sistemas tradicionais e os usam de uma maneira não convencional.

L.H - O quanto das antigas crenças ainda temos na ativa nos dias de hoje?

MRC - Percebemos nos cursos de extensão universitária abertos à comunidade um gradual interesse pelos cursos de religião e mitologia antiga. Existe uma retomada de interesse pelas antigas crenças religiosas da antiguidade. Tem-se uma acentuada procura de grupos exotéricos que desejam adquirir informações e conhecer as sociedades antigas, visando recuperar antigos rituais mágico-religioso, tais como os relacionado à cultura egípcia, aos cultos celtas, gregos como o de dionisism, o de Hecate e o de Demeter. O interesse que deixa transparecer um retorno ao contato com as divindades relacionadas com a natureza. Algumas crenças supersticiosasainda permanecem entre nós, tais como o temor por gatos pretos na sexta-feira; o poder mágico dos números três, sete, dez e treze, não comer nada que caia no chão, ou até, se benzer ao sair de casa para não temer as encruzilhadas.

L.H - O que conhecemos de mais importante sobre as crenças mágicas dos egípcios?

MRC - Alguns pesquisadores, como Andre Bernand na obra Sorciers Grecs, afirmam que os egípcios foram herdeiros da magia dos babilônios. Uma das tradições aponta que o deus Hermes tem acentuada familiaridade com a divindade egípcia Thoth e que os príncipios mágico-filosóficos dos pitagóricos sobre a transmigração da alma se aproximam dos saberes mágicos dos egípcios. Alguns filósofos pré-socráticos empreenderam viagens ao Egito, visando apreender os escritos secretos guardados nas paredes dos templos. No século IV a.C., o filósofo Demócrito de Abdera viajou até o Egito, local ao qual foi iniciado junto a conhecimentos e cultos secretos que resultaram na publicação de tratados sobre o ouro, a prata, as pedras e e elementos da natureza. Há inúmeras fórmulas mágicas escritas em papiros hieráticos no Museu de Berlim do tipo apotropaico,  ou seja, para proteger as crianças de doenças, contra mordidas de escorpião, proteção contra inveja, mal olhado ou contra assalto. Nos papiros mágicos podemos ler os seguintes encantamentos: "Eu sou Anubis, Eu sou Osir-phre/Osiris-Re, Eu sou Osot Soronouier, Eu sou Osiris a quem Seth destruiu. Eu (nome do solicitante) ordeno a você fazer, que me obedeça e me torne invísivel". Como podemos notar, o solicitante pede proteção contra algum mal.

L.H - Qual o ritual mágico mais curioso de que se tem notícia?

MRC - O ritual de preparação do feiticeiro que realiza a magia com o auxílio da deusa Circe, Hécate e Medeia. O feiticeiro se banhava visando a purificação do seu corpo, ficava três dias em total abstinência sexual e alimentar, colocava roupas limpas, e no terceiro dia, antes do nascer do Sol, saía em busca de determinadas ervas e raízes mágicas que só podiam ser arrancadas da terra usando os três dedos da mão direita e, durante a colheita, entoava alguns cânticos para a divindade Hécate. Em geral esta prática mágica tinha por fim atender ao solicitante que desejava reaver um amor perdido para outra pessoa. As ervas e raízes são usadas em banhos de imersão de forma a tornar o solicitante irresistível aos olhos do ser amado. O mais interessante é que ao final do ritual, o solicitante levava para casa uma poção mágica e/ou unguento. A poção deveria ser colocada aos poucos na bebida ou comida do ser amado, se colocasse em altas doses, causava a morte. O unguento aromático deveria ser colocado nas partes íntimas, fato que causava, depois de algum tempo, a impotência masculina.

L.H - A antigas placas de maldição romanas, placas de cera com inscrições vistas em seriados como Roma, da HBO, eram mesmo usadas?

MRC - Sim. Usadas entre os romanos, gregos, iberos e britâncios na antiguidade. Achei muito interessante o episódio veiculado pela série Roma. A prática exibida denomina-se magia dos desfixiones ou katadesmoi, que consiste em selecionar uma lâmina de chumbo e inscrever o nome do inimigo ou adversário na superfície. O solicitante escreve a maldição que deseja para o seu inimigo: se for contra um artesão de sucesso, o solicitante pede a Hermes que retenha a sua mão, raciocínio de forma que ele não consiga administrar o seu negócio de sucesso. Aristóteles, na obra Retórica, chama essa ação de inveja. Caso o inimigo seja alguém que vai levá-lo ao tribunal, o usuário da magia deve escrever o nome do acusador e suas testemunhas e pedir que eles não consigam chegar ao tribunal. Existe também as imprecações contra as atividades esportivas, em que o adversário coloca o nome do oponente na lâmina e pede às potências do mundo subterrâneo que seu inimigo não tenha forças para derrotá-lo. O período mais remoto dessa prática foi detectado entre os atenienses no V século a.C., e a tragédia Medeia de Eurípides seria uma forma de denúncia sobre a magia dos defixiones em Atenas. Somente com Platão, na obra As Leis, que vamos descobrir o nome dessa prática mágica, e com Teócrito, na poesia Idílio a Samantha, que conhecemos o seu procedimento. Esse tipo de magia não está ao alcance da população de poucos recursos, somente os indivíduos muito ricos tinham condições financeiras para pagar o feiticeiro e solicitar a sua realização. O alto preço se deve ao fato de ser proibido remover os túmulos de pessoas mortas. O ato consiste em crime previsto pela legislação dos atenienses e romanos. As lâminas de chumbo foram encontradas no cemitério do Kerameikos em Atenas, em santuários de deuses como Deméter. Perséfones, Hermes e também em poços d'água na região da Ágora, de Atenas. As sepulturas selecionadas para o ritual eram aquelas de pessoas que morreram antes do tempo: suicidas, vítimas de assassinato, crianças e mulheres que morreram de partos.

L.H - Como era a figura do mago nas antigas civilizações? Corresponde ao que conhecemos ou era algo mais elaborado?

MRC - A documentação nos aponta que os magos e feiticeiros eram pessoas comuns que, por alguma razão, como ascedência familiar, foram iniciadas nas práticas da magia. O saber mágico consistia em conhecer a noite de lua certa para entrar em contato, por meio das palavras, cânticos e entoação, com as potências sobrenaturais: deuses, mortos e forças da natureza. A documentação do V século nos aponta para as mulheres feiticeiras denominadas de pharmakides como Circe, Calipso, Medeia e Hécate. Nos discursos, como oradores áticos do sécuo IV a.C, temos Andocides, Demóstenes e outros identificando como pharmakides, a sacersdotisa Ninos, a hetaira Frinea de Thespis e Theoris de Lenmos como praticantes de magia que trazia prejuízo para a coletividade ao disponibilizar os seus saberes mágicos a quem tivesse recursos para pagá-las por um alto preço. Como podemos observar, a documentação nos aponta para as mulheres estrangeiras como as especialistas nas práticas mágicas; as razões são diversas, tais como a proximidade com o preparo de ervas como alimento, o conhecimento de chá abortivo, de unguento que servia como estímulo sexual masculino e as poções mágicas visando despertar o amor eterno no ser amado. Entretanto, havia magos denominados de pharmakeus que exerciam as práticas mágias proibidas às mulheres como o psychagogos, cujo ritual consistia em entrar em contato com os seres divinos como o realizado pelo filósofo Empendocles de Agracas e o ritual de nekromancia, a atividade de evocção do mortos. O ritual consistia em trazer de volta a alma desses mortos à superfície a fim de atender a solicitação que podia ser uma informação ou um pedido do feiticeiro.

L.H - A magia romana tem antescedentes em outras civilizações como a etrusca?

MRC - Por meio de documentação textual e das escavações arqueológicas podemos afirmar que as práticas visando o benefício da coletividade, como fertilidade do solo, dos animais e das mulheres, circularam por todo o mundo antigo; era prática comum. Entretanto, o hábito mágico de remover sepulturas com o intuito de atender interesses individuais devido à incompetência em gerir negócios, inveja pelo sucesso do adversário ou a cobiça; o local mais remoto a ser identificado é somente entre os atenienses do V século a.C. A partir deles que esse hábito se difunde para os romanos. Os etruscos são especialistas na arte da advinhação e dos presságios.

L.H - O quanto das antigas crenças chegou até a Idade Média?

MRC - A partir do Império Romano, vários manuais foram escritos e passados adiante pelos aprendizes de feiticeiro. O imperador Otávio Augusto determinou a queima de vários manuais que ensinavam os procedimentos mágicos, mas outros sobreviveram e chegaram até a Idade Média onde foram guardados em segredo. Já as lâminas de chumbo deixaram de ser usadas no século VI depois de Cristo e só foram descobertas pelos pesquisadores durante escavações arqueológicas no cemitério do Kerameikos em Atenas no século XIX.

L.H - Qual o objeto mágico mais usado?

MRC - Dependendo da intenção do solicitante da magia, pode ser lâmina de chumbo, vísceras de animais como salamandras, ervas e raízes diversas, vinho, azeite, cera, recipientes para queimar algo que pertença ao inimigo. O ritual era realizado sempre à noite, de preferência na lua cheia, em lugares sagrados como fendas de santuários, cemitérios, leito de rios e poços de água, locais de acesso a um munso subterrâneo.

L.H - Pode nos contar algum ritual mágico completo que tenha significado histórico?

MRC - Foi somente no III século que o poeta Teócrito nos apresentou o ritual mágico para trazer de volta a paixão e a pessoa amada através da destruição da rival. Antes, tínhamos somente algumas poucas informações de Platão. Não podemos esquecer que as práticas mágicas assim como os rituais de mistérios, eram ações às quais se guardava o silêncio, o segredo e não pretendo quebrar essa tradição, portanto não vou falar mais...

L.H - O que os historiadores podem aprender com o estudo das práticas mágicas antigas?

MRC - Os pesquisadores de magia e religião aprendem, por meio dos documentos e dos vestígios arqueológicos, que o mundo é, foi e será sempre composto pela diversidade de crenças e prátia mágico-religiosas muito singulares e interessantes. É de fundamental importância estudá-las pelo viés científico, visando entender as motivações, seus ritos, cultos e comportamentos dos antigos e comparar com as práticas encontradas nos dias atuais.

L.H - Há algum culto antigo que tenha se metamorfoseado quando do advento do cristianismo e que esteja em uso ainda hoje?

MRC - Tanto os cultos quanto os ritos, por exemplo, o uso do incenso e do lume nos templos, estão presentes nas missas do catolicismo. Entrar na residência com o pé direito e sempre se benzer com a mão direita, enfim passaríamos  um bom tempo enumerando os usos do passado na atualidade. Alguns procedimentos considerados mágicos tornaram-se saber científico na modernidade, tais como o efeito de folhas das famílias das mentas ser muito útil para os problemas menstruais, as dores de varizes serem amenizadas com fricção de folhas de hera, a cebola selvagem e o alho triturados com o óleo e vinho serem eficazes para conter sangramentos e secreção vaginal, uma planta como a belladona poder ser usada como calmante, mas em porções concentradas, tornava-se abortiva, e as ervas da família do opium serem eficazes como analgésicos ideais para as mulheres em trabalho de parto.

L.H - Sabe-se que a prática dos bonecos vudu tem raízes mais antigas. Havia equivalentes na antiguidade?

MRC - Achei interessante essa pergunta, pois existe o preconceito de colocarem as práticas mágicas identificadas como vudu como sendo oriundas dos negros africanos. tal fato me permite alertar aos pesquisadores que no período de Péricles já existia a magia de amaldiçoar os inimigos por meio de bonequinhos de chumbo, argila ou cera, enterrando-os em sepulturas. Percebe-se um certo constrangimento dos europeus ao tratar o tema magia, pois estas bonequinhas, assim como lâminas de chumbo, estão mantidas na área de reserva técnica, fora das vistas dos visitantes dos museus europeus. Foram encontradas aproximadamente duas mil lâminas de chumbo, sendo que somente 600 foram catalogadas (nós temos no NEA/UERJ a imagem e inscrições de aproximadamente 230 delas em processo de tradução e catalogação). Algumas foram encontradas junto com essas figuras humanas espetadas com estiletes tipo prego, localizadas em determinadas sepulturas do cemitério de Kerameikios. Não sabemos como os atenienses as chamavam, como algumas eram de chumbo, os pesquisadores por convenção as denominam de katadesmos. Nos papiros magicos estão descritos procedimentos na confecção das bonecas vudu, a saber: pegar chumbo ou cera e confeccionar a figura humana, cujos órgãos genitais devem ser bem demarcados, as mãos devem ser atadas às costas e os pés presos. Em seguida, devem ser selecionadas treze pequenas estacas de ferro tipo prego, recitando enquanto perfura o boneco: "Eu estou perfurando este prego no cérebro de Fulano, enterro dois nos seus ouvidos, dois nos seus olhos e um na boca... Dois em seu peito... Um em sua mão... Dois eu enterro na genitália (pênis ou vagina) e dois nos seus pés. Eu enterro estes pregos em cada uma das partes de Fulano para não se interessar por ninguém, mas somente por mim, só pense em mim". Como podemos observar, essa é uma magia amorosa denominada de philtros katademos, pelo fato de ser acompanhada por uma lâmina de chumbo com os dizeres acima e cuidadosamente colocada na sepultura de um indivíduo morto antes do tempo.

Comentários

  1. Admiro muito o conhecimento da Maria Regina Cândido, bem como também acredito que seu trabalho no Brasil é de produção ímpar.

    Celso, parabéns também por tua pesquisa.

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