O mago monge


Ao estudarmos a História das crenças e práticas mágicas e tudo mais o que comumente está relacionado a estes campos é interessante notar que em diferentes épocas estas práticas e crenças estão sempre subordinadas à credulidade de seu tempo. Ou seja, sempre prevalece o julgo do que é real e o que não é. Uma observação básica aos que pesquisam sobre o tema é a notória proximidade, quase que sem distanciamento, entre a primitiva filosofia natural moderna e a magia. Ampliando-se em anos, podemos perceber como essa relação vai inclusive contribuir para o desenvolvimento da ciência moderna. Um paradoxo interessante, já que a ciência, filha da magia, hoje a nega como pura e simples superstição. Claro que o que se entende por magia é algo também variável que está ao sabor das ondas do tempo e não algo perene e imutável. Há um bom tempo, desde o advento e domínio da ciência moderna, a magia esteve associada a hábitos comportamentais que a racionalidade ocidental entendia e considerava como sendo embaraçosos e desatinados. “Tanto no contexto religioso como no científico, a magia ficou tão desconceituada que tem tido uma imagem negativa desde então. Descrevermos um aspecto de qualquer cultura como mágico é considerado, agora, exigir questionamentos sobre sua coerência e racionalidade” (CLARK 2006, 286)
        O século XX visto por muitos como o corolário do cientificismo viu emergir no fin de sècle um movimento (perdoe-me a expressão) de contornos românticos (não no sentido utópico) denominado ocultismo. Claro que não era algo coeso, como o próprio romantismo, mas as várias denominações e sociedades deste contexto compartilhavam concepções, ideias e princípios em comum, já que se movimentavam dentro de um mesmo milieu. Não é necessário pontuarmos aqui cada uma dessas visões, nos basta dizer que desta época vemos surgir os espiritualistas, teosofistas, sociedades mágico-rituais, etc. Por outro lado as ciências ganhavam cada vez mais contornos positivistas e materialistas. O empirismo extremo anulava qualquer tipo de dedução que não passasse pelo crivo das provas e evidencias científicas. Os ocultistas talvez pudessem ser definidos como os românticos do século XIX e XX por sua crítica a este tipo de racionalismo exacerbado, assim como fizeram os românticos antes deles em suas criticas ao racionalismo iluminista. Talvez a critica agora não fosse tanto em relação à ciência propriamente dita, e sim a seus métodos, pois devemos lembrar que muitos conceitos científicos foram absorvidos ou influenciaram muitas concepções que permeavam o meio oculto. Mas o que não escapou da critica destes românticos do século XIX foram as igrejas estabelecidas, não tanto por seus dogmas, mas a falta de uma espiritualidade mais vívida.

O porquê de eu estar escrevendo isto? É que recentemente assisti à um filme que havia visto faz tempo e só agora consegui encontra-lo novamente, trata-se de Rasputin (1996) de Uli Edel. Com certeza muita gente já ouviu falar neste homem enigmático e controverso. Nos fins dos dias da dinastia dos monarcas russos Romanov, Rasputin exerceu grande influência sobre a corte, especificamente sobre a esposa de Nicolau II, Alexandra Fedorovna, isto devido às supostas curas que ele realizava em seu filho Alexei que sofria de hemofilia, já que nos episódios de sangramento do menino, Rasputin era o único a conseguir estancar o sangue. Não é de hoje que mágicos, monges ou pessoas que supostamente possuíam poderes especiais eram convocados às cortes europeias, desde a Idade Média, ou até antes (mas vamos nos ater as monarquias europeias) algumas dessas pessoas eram convocadas a dar conselhos e até mesmo influenciar decisões importantes de Estado. Os astrólogos, principalmente, eram muito requisitados pelos monarcas. O famoso John Dee (1527-1608) é um exemplo interessante. “Em 1553, quando Maria Tudor chegou ao trono inglês, convidou Dee a traçar-lhe o horóscopo e a sua irmã que lhe sucedeu em 1558 escolheu sob conselho dele, a data de 14 de Janeiro de 1559, momento astrologicamente auspicioso para sua coroação” (GREENWOOD 2002, 115). Mas é claro que o contexto de Dee era totalmente diferente ao de Rasputin. A astrologia e os magos da corte eram aceitos (quiçá tolerados) já que muitas práticas mágicas provinham dos próprios cristãos. Rasputin é um exemplo daquelas pessoas duplamente perigosas. Pois viveu num momento em que o racionalismo penetrava o solo com suas bases fortes. Em um trecho do filme o médico da família fala para Rasputin. “Já realizei muitas autópsias e em nenhuma delas encontrei alma”. Ao que Rasputin responde: “Você encontrou sentimentos e emoções?”. 


Rasputin é uma pessoa que é vista como um mágico “cristão”, mas que carrega a difícil condição de ser uma espécie de visionário, e estas pessoas são um problema e tanto para as igrejas estabelecidas, já que “possuem” o dom de contatar diretamente a divindade. Sua relação com Deus, mais especificamente a Mãe de Deus é direta. Talvez, como mostra no começo do filme, o sacerdote da igreja teria sido sábio ao reconhecer suas visões da Mãe de Deus e aceitar sua reivindicação de ter sido tocado pela Santa. Pois em muitos casos é melhor a igreja reconhecer do que rebater, o que pode gerar a constituição de seitas por exemplo. O filme segue uma dinâmica em que mostra a corte totalmente impregnada do magismo, além disso, é uma corte, uma expressão monárquica que reflete o símbolo do Antigo Regime europeu. A revolução bate a porta do trono que está envolto em sua aura de religiosidade. Algumas cenas nos dão a entender que tudo aquilo é culpa dos próprios soberanos que perderam sua fé. Em uma das cenas Rasputin ordena à czarina para ajoelhar-se diante dele, ou melhor de Deus, ou dele mesmo, já que Rasputin se vê como um instrumento de Deus e que sua alegria e prazer é a alegria e prazer de Deus. A experiência religiosa de Rasputin é intensa, talvez isto deva em parte a sua formação religiosa, ele fez parte de uma seita cristã chamada Khlysty que utilizava a flagelação e o sexo como meio de atingir o êxtase. Em uma das cenas Rasputin diz a uma aristocrata que Deus deu-lhe a chance do arrependimento. Mas como ela não havia feito nada para se arrepender Deus, segundo Rasputin, deu-lhe a chance de cometer adultério. “Ir para a cama comigo é ir para a cama com Ele” rebate o monge.
Alexei, o garoto hemofílico, parecia ver nele um mágico, assim como os revolucionários. A diferença é que estes viam nele a figura do mágico relacionando-o a um mentiroso, enganador, um aproveitador que levava a Rússia a fome e a guerra. E a criança via nele simplesmente um mágico que tirava sua dor, já que a como num passe de mágica somente Rasputin o aliviava dos tormentos. No final Alexei diz: “Às vezes temos que acreditar em alguma coisa: Às vezes temos que acreditar na magia”. E mais uma vez num diálogo emocionante Rasputin pergunta, como sempre fazia nas crises do menino: “A dor se foi?” ao que Alexei respondeu “sim”.
 Libertino ou Santo? Religioso ou Pecador? Acho que a beleza desta figura histórica está nestes paradoxos e nos enigmas que envolvem váriso fatos de sua vida, do nascimento até o mistério de sua morte. De uma coisa podemos ter certeza, Rasptuin era um humano demasiado humano, na melhor acepção nietzschiniana.
Até hoje não encontrei uma única biografia dele em português. Eu sei que há um autor que já escreveu pelo menos duas biografias sobre ele, Edvard Radzinsky, mas sinceramente não li nenhuma. Filmes são vários. Eu particularmente gosto deste e de uma versão de 1966. O mais antigo com o papel de Rasputin com Christopher Lee, uma grande atuação. Mas fisicamente no de 1996, Alan Rickman ficou perfeito.
Vale a dica.

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