O eco de Lactâncio
Talvez o maior problema em definir “religião”
seja o fato de que o termo como esfera específica (assim como política por exemplo) foi
primeiramente pensado dentro de um contexto cultural e histórico e específico.
Originalmente o termo surge no Ocidente, mais especificamente dentro de uma estrutura
intelectual e não só isso, mas também dentro de um mundo cristão, ou seja, em
outras palavras, a religião foi pensada dentro do cristianismo. O problema piora
quando os europeus tentam aplicar as primeiras definições a fenômenos culturais
diferentes daqueles do Ocidente. As definições são sempre complexas,
principalmente quando se referem a termos que devem ser analisados por uma
perspectiva histórico/temporal, haja vista, termos como bruxaria e religião. O
termo religião não só passa por uma complexidade polissêmica como também de
derivações etimológicas. Segundo Klaus Hock, a palavra latina religio descreve a ‘atuação com
consideração’ ou ‘observância cuidadosa’, Embora, para os romanos, a palavra religio trouxesse principalmente o
aspecto da exatidão ritual, da atuação correta do ato religioso, o termo pode
ser interpretado em vários sentidos (HOCK 2006, 17-18). Curiosamente as
primeiras críticas dos autores pagãos em relação aos cristãos primitivos não
estava relacionado a um uso do termo religião. Roque Frangiotti nos mostra que
uma das primeiras acusações graves contra os cristãos, conforme aparece no
relato de Suetônio, foi a de praticarem uma ‘superstição nova e maléfica’ e, no
relato de Tácito, a de serem os cristãos presas de uma ‘superstição perniciosa’.
Em Plínio, a expressão é superstição
perversa e desmedida (FRANGIOTTI 2006, 39). Com Cícero temos a definição de
religio como cultus deorum, ou seja, como ‘culto aos deuses’, ‘cultivo’ ou ‘adoração’
dos deuses. Estas definições referem-se à observância correta dos rituais, ou
seja, estão relacionados a um sentido prático. Segundo Hock (2006, 18), Quase
como termo oposto à neglegere, ‘negligenciar’.
Relegere, ‘observar cuidadosamente’
se refere à realização e à sequência correta dos atos no culto, no serviço a
deus, ou mais corretamente, no serviço aos deuses. Neste sentido a
religiosidade romana se caracteriza pela ortopraxia e não ortodoxia.
Hoje em dia é muito comum ouvir de muitos
autores e adeptos de novas formas de espiritualidade que suas práticas são
religiosas. A ideia de religião em muitas dessas colocações são autoexplicativas,
não havendo, na maioria das vezes, necessidade de uma definição sistemática.
Isto não significa que muitos autores não tentam buscar tais definições. Além
do aspecto autoexplicativo da religião, existe entre muitos neo pagãos uma fala
mais comum que remete a uma conceitualização mais sistemática e teológica. Esta
fala é o que chamo de “Eco de Lactâncio” e serve como uma luva à ideia de busca
por uma religiosidade perdida (perspectiva romântica) através do contato com deuses
ancestrais. Lactâncio foi um escritor e orador cristão do século III/IV. Foi
este orador cristão que atribuiu à religio
a derivação de religare (no
sentido de ligar de novo, levar de volta ou ligar de volta). Tal definição foi
utilizada por Santo Agostinho (354-430) acrescentando vera, religio vera, a ‘religião verdadeira’, ou seja, a religião verdadeira
que leva de volta a Deus. Recentemente foi proposta uma nova variante do termo:
religio de rem ligare, ‘amarrar a coisa’, no sentido de descansar das inquietudes
(HOCK 2006, 18). Não há um consenso em relação as variantes, mas o que se sabe
é que há uma série de indícios, principalmente referentes as discussões entre
cristãos e pagãos na época do cristianismo primitivo, que favorece a noção de
que o termo religio relaciona-se ao cultus deorum, ou seja, a ‘atuação
correta’. Um exemplo disso são as impressões dos autores pagãos citados acima
sobre o cristianismo. Para eles superstitio,
o termo contrastante de religio,
não se referia a uma fé errada, mas a uma atuação errada ou ato incorreto.
Apesar da noção adotada por Agostinho, e ecoada pelos neo pagãos (pelo menos alguns), os cristãos
adotaram por muito tempo o aspecto pagão da ortopraxia (pagã). Sendo assim religio é a atuação cúltica correta e
não aquilo que se crê em matéria substancial de fé.
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