Entre a cruz e o Estado - Qual o lugar da religião?

        Qual o lugar da religião no mundo de hoje? Começar este artigo com uma pergunta logo de início não significa que pretendemos com esta fechar uma discussão, mas sim dar continuidade a um debate que parece não ter um consenso dentro de nosso campo. Não significa também que não temos uma opinião sobre o assunto, pois lançar uma questão logo no início e privar o leitor de uma resposta nos parece uma postura um tanto quanto relativista e inútil. Pensar em espaço e religião, pode parecer aos menos atentos, óbvio, na medida em que se entenda a religião apenas em seu espaço de “funcionamento”, ou seja, os templos, as igrejas, etc. Mas é claro que a religião há muito tempo já rompeu esses limites. Acreditamos que a própria institucionalização de determinadas religiões nunca foi obstáculo para que houvesse uma re-significação dos aspectos religiosos, exemplo disso é o catolicismo popular que se desenvolveu no Brasil, desde sua formação. Mas levando-se em conta ainda seu aspecto institucionalizado, não podemos negar que antes da modernidade, a instituição religiosa era mais forte, entenda-se mais forte como adjetivo que perpassa todas as esferas da sociedade e influencia a vida das pessoas em quase todos os níveis. Portanto entendemos que a divisão das esferas fruto do pensamento moderno não acabou de todo modo com a influência religiosa nos campos não-religiosos. Concordamos portanto, com Paula Montero (MONTERO, 2006, p.48) ao descrever que:

Embora a diferenciação das esferas sociais certamente constitua uma dimensão fundamental da ordem social moderna, não pode ser reduzida a um movimento de simples retração do religioso.

Dentro dessa perspectiva podemos perceber, fazendo-se uma leitura sociológica, que a religião não se retraiu com a modernização, mas, pelo contrário encontrou espaço no mundo moderno. Mesmo assim ainda há questionamentos interessantes acerca de seu lugar no mundo atual. Melhor do que dizer “lugar” é referirmos à influência da religião. O homem hodierno vive uma época singular da história, que uns chamam de ultra modernidade, pós modernidade, modernidade liquida. A denominação são apenas problematizações, o que os autores que referem-se a esses termos tem em comum, é o que nos é mais importante nesse momento, ou seja, a crise das instituições modernas. Para muitos autores a discussão sobre a crítica e o estudo da religião devem ser entendidas nesse contexto. Para Pierucci (1998, p.45) essa perspectiva de análise, leva em conta a premissa de alguns sociólogos de serem menos injustos com seu objeto (religião), já que a crítica radical da religião se fez na modernidade, portanto não deve ser repetida na pós. Assim, concordamos com Pierucci (1998, p.45) quando este nos descreve que o estudo da religião no sentido pós-moderno nada mais é entre outros aspectos um abandono da tese de secularização de Weber.
Mas se por um lado, um dos aspectos da organização da modernidade se fez pela separação das esferas, tirando da religião seu aspecto unificador e globalizante, por outro a própria modernidade com sua moral e valores pode ser entendida como carregada de características que antes de seu advento eram essencialmente religiosas e que de certa maneira foram herdados do pensamento religioso. Segundo Luc Ferry (2008, p.25-26) a própria

filosofia ocidental moderna poderia definir-se como uma tentativa de retraduzir os grandes conceitos da religião cristã no interior de um discurso laico, isto é, de um discurso racionalista. De certa forma, a Declaração dos Direitos Humanos – num modo diferente e num outro registro – freqüentemente não passa de um cristianismo laicizado ou racionalizado.

Para complementar a afirmação de Luc Ferry, basta observarmos o século XIX com sua crença no progresso científico e tecnológico.

Corte Europeia de Direitos Humanos X Governo italiano

            Sendo assim nos cabe pensar qual o lugar que a religião ocupa nos dias de hoje. Recentemente a Itália se viu envolta de uma discussão desse tipo. Em 2002 Soile Lautsi, mãe de dois filhos que estudavam numa escola pública, o instituto público Vittorino da Feltre, localizado na cidade de Abano Terme, na Província italiana de Padova, pediu para que o instituto retirasse os objetos religiosos, no caso os crucifixos, das salas de aula, pois iam contra as crenças de sua família. O pedido foi negado pela instituição. Coube à Lautsi procurar os meios legais da justiça.  O resultado dessa batalha judicial só saiu agora em 2009, A Corte Europeia de Direitos Humanos determinou que o governo italiano terá de pagar cinco mil euros de indenização por danos morais a Soile Lautsi. Esta situação reflete muito bem a reviravolta da história contemporânea. Numa perspectiva histórica, é interessante notar que se antes do advento da modernidade a religião também se ocupava da justiça dos homens, baseada na justiça divina, hoje de juiz acabou passando a réu. Não é nossa intenção neste artigo fazermos um revisionismo histórico apontando culpados e inocentes no tribunal da história, mas não deixa de ser um fato curioso essa “reviravolta”. Outro ponto interessante é que essa situação aconteceu na Itália, berço do catolicismo, e por que não dizer do cristianismo. Numa análise de contexto histórico, vale dizer que a Itália assim como o restante da Europa passa por um período que é característico da era globalizada que vivemos, a imigração em massa de indivíduos que buscam melhores condições em países mais desenvolvidos economicamente. Esse é um dado que não pode ser deixado de lado ao analisar este caso. Portanto a questão do choque cultural é importante, mas não determinante. Antes de prosseguirmos com nossa análise vale citar que também no Brasil a discussão sobre os símbolos religiosos também existe, apesar de não ser tão exposta na mídia. Em artigo publicado no Le monde Diplomatique Brasil de setembro de 2009, o professor Edilson Farias da Universidade Federal do Piauí, escreve que no Brasil observa-se um crescente interesse do público em geral sobre essas questões, símbolos religiosos em repartições públicas. Edilson descreve que uma forte evidência dessa situação são as inúmeras cartas endereçadas ao Ministério Público solicitando a retirada desses símbolos. Como podemos ver a questão da imigração na Europa como dissemos, é fator importante mas não decisivo, pois o que ocorre na Itália também ocorre no Brasil. E porque não dizer que isso é um quadro que se observa em praticamente todo o Ocidente. Cabe aqui fazermos um recorte metodológico, ao invés de nos atermos em um único caso de um único país, mais interessante nesse momento é nos atermos a uma característica geral. Não estamos com isso negando as especificidades de cada país e sua história, mas como está exposto em nossa questão inicial, nosso problema deve ser lido numa perspectiva maior, além disso nossa análise vai mais de encontro a conceitos sociológicos, e vamos a ela.

O Exílio de Deus ou o retorno do religioso?

            A modernidade (não a pós) dividiu as esferas, mas também alterou a mentalidade do ser-humano, a descoberta do átomo foi uma “benção” e ao mesmo tempo um “inferno” na humanidade, mas o que isso tem a haver com nossa analise? Tudo, o relativismo se fez muito mais presente, tudo é bom ou ruim só depende do ponto de vista. Essa relativização não é ao nosso ver de todo mal, aliás a questão não é discutir valores, mas sim o pensamento religioso. A questão é que a relativização trouxe ao homem moderno primeiramente um alívio, libertando-o das correntes do pensamento antigo, estagnado, “medieval”. Num segundo momento trouxe a perdição, o “andar as cegas”. Sai de cena em nossa época contemporânea as “grandes narrativas”, que eram responsáveis por fornecer uma leitura coerente dos caminhos da humanidade. A leitura de um mundo relativista foi criticada por Anthony Giddens, o que levou-o a abandonar a idéia de pós-modernidade (JAMESON, 2005, p.20). Mas como observamos no inicio do artigo, essa é uma questão que se restringi mais (especialmente na ultra-modernidade de Giddens) à crise das instituições modernas. Como nos lembra Pierucci, acima citado, a crítica à religião foi muito mais radical na modernidade.
            Numa análise histórica Lucien Febvre nos mostra que a própria maneira de se acreditar em algo, por exemplo no sobrenatural, mudou ao longo da história. Num estudo sobre religiosidade no século XVI, descreve em seu livro O problema da incredulidade no século XVI: A religião de Rabelais, que se acreditava sem questionar, os milagres aconteciam, “existiam” e estavam por toda parte, ninguém duvidava (FEBVRE, 2009, 198). Claro que o modo de estruturar os pensamentos era outro, e pensar o que entendemos por credulidade ou incredulidade no século XVI com nosso modo de entender esses conceitos seria um erro anacrônico, que o próprio Febvre admite, mas que o historiador de sua época muitas vezes não tinha como fugir.
            Do puro “acreditar” até o relativismo e as teorias pós-modernas, muita coisa aconteceu, nesse meio surge o marxismo, outra grande narrativa, tendo Marx a frente dessa grande corrente de pensamento que prometia a librtação final do ser humano das amarras da dominação burguesa (CRESPI, 1999, p.11), a filosofia niilista de Niezchte, a revolução industrial, etc. Portanto não só a configuração social muda, mas como a própria mentalidade. Nietzche matou Deus anunciando essa modernidade acompanhada da critica radical da religião. Hoje com muito gozo, os religiosos anunciam aos quatro ventos o retorno do sagrado. Essa idéia de retorno ao sagrado ao nosso ver a que menos faz sentido. Primeiramente pela própria problemática da palavra “sagrado”, em segundo pelo fato de que se entendemos sagrado por religioso, não faz sentido uma volta de algo que não foi, que não deixou de estar presente. Podemos sim concordar levando-se em consideração as especificidades de determinado caso com Marcel Gauchet ao descrever sobre a religião hoje, segundo ele:

Assistimos a dois processos simultâneos: a uma saída da religião, compreendia como saída da capacidade do religioso em estruturar a política e a sociedade, e a uma permanência do religioso na ordem da convicção última dos indivíduos, observando nesse terreno um amplo espectro de variações, segundo as experiências históricas e nacionais (GAUCHET, 2008, p.41-42).


Pluralismo

            O mundo globalizado nos colocou frente a frente mesmo que de maneira indireta com outras realidades. O relativismo nos mostrou que todas as religiões são boas e válidas, disso desprende-se uma nova forma de se lidar com a religião. Na perspectiva moderna a religião não mais unifica, é o fim do monopólio religioso, a religião não legitima mais o mundo (BERGER, 1985, p.143). Isso não significa que as igrejas percam adeptos, pelo contrário surge uma nova forma de adepto que Danièle Hervieu-Léger vai chamar de peregrino. O tráfego de adeptos entre as religiões reflete não um enfraquecimento da religião, mas sim um desprendimento dos adeptos, a ausência de um vinculo mais forte em relação a determinada religião (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.41). O pluralismo religioso contribui significamente para esse quadro.


Conclusão

            Em vista do que foi discutido até aqui, podemos finalizar respondendo a nossa pergunta inicial. Qual o lugar da religião no mundo de hoje? No livro Religião e espaço público organizado por Patrícia Birman nos mostra que a religião na atualidade está em vários lugares e se relaciona com vários setores, não chega a se impor como discurso unificador mas busca se adaptar a realidade atual.  É um entrelaçamento, uma nova configuração em que a religião também atua muitas vezes como ator principal (BIRMAN, 2003, p.12). Sendo assim, se observarmos mias de perto o caso do crucifixo na Itália, não apenas pela perspectiva de uma liberdade religiosa, mas também pelo lado da religião, veremos que o lugar da religião no mundo de hoje, é todos, menos ficar restrito aos lugares que a caracterizam, templos, igrejas, etc. Portanto concordamos com Casa Nova quando este diz que as tradições religiosas se negam a aceitar o papel marginal que a modernidade lhes reservaram (CASANOVA, 1994, p.18).


 REFERÊNCIAS:

CASANOVA, José. Religiones publicas en el mundo moderno. Madrid: PPC, 2000.

BERGER, Peter. O Dossel Sagrado, elementos para uma teoria sociológica da Religião. São Paulo: Paulinas, 1985.

BIRMAN, Patrícia (org). Introdução. In: Religião e espaço público. São Paulo: Attar, 2003.

CRESPI, Franco. A experiência religiosa na pós-modernidade. Bauru, SP: Edusc, 1999.

FARIAS, Edilson. Uma separação de interesse público. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, Set. 2009. Estado e Religião, p.14.

FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI, a religião de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

FERRY, Luc; GAUCHET, Marcel. Depois da Religião. Rio de Janeiro: Difel, 2008.

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido, a religião em movimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

JAMENSON, Frederic. Modernidade Singular, ensaio sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

MONTERO, Paula. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos. Cebrap, n.74, p.47-65, mar. 2006.

PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista brasileira de Ciências Sociais. v.13, n.37, p. 43-73, Jun. 1998.

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