Notas sobre a Religiosidade, crenças e práticas mágicas no Brasil

Maria Lucia Montes descrevendo sobre a religiosidade brasileira contemporânea parece concordar com a idéia de que há uma descentralização das religiões como portadoras de uma produção de significados[1]. Esse quadro de perda do poder centralizador também é muito bem desenvolvido por Danièle Hervieu-Léger. Para esta autora, “diferentemente daquilo que nos dizem, não é a indiferença com relação à crença que caracteriza nossas sociedades. É o fato de que a crença escapa totalmente ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas”[2]. Nesse sentido não só os aspectos religiosos referentes às crenças e doutrinas devem ser levados em consideração dentro de uma esfera de mudança na modernidade, mas também aqueles elementos referentes a socialização.  Essa situação religiosa não é exclusiva do Brasil, na verdade é algo que está ocorrendo em vários países. Mas como cada contexto e país possui suas especificidades devemos fazer uma breve consideração histórica sobre a religiosidade no Brasil. Sendo assim, tomo a liberdade de relacionar este histórico dando mais destaque a questão das práticas mágicas e a feitiçaria.

Identidade Religiosa e cenário brasileiro

                  O Brasil é um país católico por tradição, mas isso nunca foi um empecilho para o desenvolvimento de outras religiosidades, muito pelo contrário, desde os tempos colônias impera um sincretismo que só foi possível, podemos dizer, graças ao chamado catolicismo popular que aqui ali se desenvolveu. Essa religiosidade popular é resultado de um sincretismo que derivado de três matrizes, o branco europeu, o africano escravo e o índio nativo, dentro dessa lógica surgiram vários tipos de crença que foram ao longo do tempo exaustivamente documentados pelas visitações do Santo Ofício, essa peculiaridade, que pode se caracterizada como original, é inclusive apontada por muitos historiadores, em especial através da análise da historiadora Laura de Mello e Souza, que mostrou essa faceta da religiosidade popular num trecho de seu livro “O Diabo na Terra de Santa Cruz, feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial”(1986). Descrevendo sobre a crença dos indivíduos na colônia do século XVII e XVIII ela cita o caso de “Ângela Micaela, moradora na fazenda de sua filha na ilha de Marajó, para essa senhora velha não fazia sentido cultuar um Deus dos mortos, e insistia com seus filhos para que deixassem de adorar Nosso Senhor, e passassem a adorar o Sol, a Lua e o Tempo, pois só eles deviam ser adorados como Senhores dos vivos”[3]. Fica claro aí o emaranhado de crenças difusas que havia na colônia, o exemplo citado é um retrato desse sincretismo brasileiro já que dele deriva elementos cristãos e provavelmente indígenas na fala de uma cabocla.
                  A igreja católica no Brasil funcionava através das irmandades, ou seja devido a falta de religiosos nestas terras, a grande maioria das igrejas da colônia eram dirigidas por irmandades religiosas de leigos. Era de se esperar que nesse tipo de sistema a distância entre a sede de Roma que já era enorme fisicamente ficasse mais distante ainda com pessoas comuns sendo as responsáveis em transmitir o complexo dogma católico, sendo assim não é difícil perceber que o sincretismo também fez parte do universo cristão católico. Gilberto Freyre (1900 – 1987) foi um dos primeiros autores a pesquisar a mestiçagem e apontar esse sincretismo. Seu trabalho clássico “Casa Grande e Senzala”(1933) tornou-se um marco da historiografia brasileira ao propor a tese de que o brasileiro tinha características em sua constituição elementos do índio, do português e do africano. Obviamente como qualquer grande clássico não deixou de ser polêmico, no final Freyre trabalha a idéia de que “o Brasil consegui equilibrar harmoniosamente antagonismos dificilmente superáveis”[4] que eram fruto dessa mestiçagem. Mas independentemente de suas conclusões Freyre é uma fonte sobre religiosidade popular, assim como Câmara Cascudo (1898 – 1986). Este foi um dos muitos interessados em crenças e religiosidade brasileira mas um dos poucos a escrever um conjunto de obras tão extensa. Seu livro que mais interessante sobre crenças e prática mágicas no Brasil é “Superstições no Brasil” (1951), nesse trabalho Câmara Cascudo descreve algumas crenças e costumes tradicionais populares e realiza uma analise em que tenta encontrar as raízes desses costumes.
                  Todas essas crenças, como dissemos, só foram possíveis num contexto de catolicismo popular que aqui se desenvolveu. Este catolicismo só foi possível graças as irmandades leigas. Mas isso não significa que houve uma tolerância religiosa e que o Brasil conviveu ao longo de sua história com essa pluralidade pacificamente. O artigo 157 do Código Penal de 1890 nos dá uma idéia dessa intolerância mostrando que se configurava como crime que levava o sujeito a prisão:


Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica.[5]


                  Portanto, doutrinas espíritas e afro-brasileiras eram proibidas de ser prática e até pouco tempo atrás eram mau vistas. E como descreve Yvone Machado, “uma coisa é certa: se há crença na feitiçaria, há combate aos feiticeiros”[6]. E não foram poucos os acusados enquadrados no artigo 157.
                  Essa caça aos feiticeiros que aconteceu principalmente no Rio de Janeiro teve lá seus ares de inquisição e envolvia toda a organização jurídica, juízes, promotores, advogados, delegados, todos de alguma maneira especialistas responsáveis por distinguir a magia benéfica da maléfica[7]. É claro que a perseguição se dava entre a camada mais pobre da sociedade que praticava essas crenças, mas isso não quer dizer que entre as classes dominantes e as pessoas mais ricas não houvesse quem praticasse e acreditasse nessas crenças, muito pelo contrário, como foi dito o sincretismo em terras brasileiras latente. O grande escritor brasileiro João Guimarães Rosa (1908 - 1967) em seu romance “Grandes Sertão Veredas” (1956) retrata esse sincretismo muito bem, mostrando que até os padres se envolviam com essas crenças populares. Além do que, essa aproximação entre padres e crenças populares já era comum desde os tempos da colônia. Num primeiro momento o clero que ali chegou na época do descobrimento carregava toda uma concepção dos indígenas que variava do monstro ao selvagem, ora o indígena nativo era visto como monstro, ora como selvagem. Monstro, devido a localização geográfica do Brasil, as margens do mundo conhecido; selvagem pela idealização romântica dos religiosos em achar que ali estavam os habitantes do paraíso celeste[8]. Se essa noção do indígena oscilou entre estes dois conceitos, uma coisa era unanimidade na para os padres portugueses, o Brasil era a “terra dos pagãos, onde Satanás dominava, opinião esta, decorrente da visão que a Igreja tinha das religiões nativas da época”[9]. Mas todo esse espanto e temor com a religiosidade nativa não foi um discurso único ao longo da história colonial, pelo contrário assim como o padre descrito no livro de José Guimarães Rosa, os padres da colônia também volta e meia estavam acolhendo e solicitando ajuda aos feiticeiros e bruxos, havia quase que uma troca de praticas entre alguns padres e alguns feiticeiros, mas tudo isso era feito na surdina. Como mostra Luiz Mott “A presença de feiticeiros nas propriedades das ordens religiosas [...] era uma grave negligência canônica”[10], afinal havia os comissários do Santo Oficio. Até mesmo alguns feiticeiros e bruxos foram protegidos por sacerdotes cristãos, como é o caso do escravo congo Domingos, um renomado bruxo que nunca foi deletado pelos sacerdotes que auxiliava.[11]
                  Podemos dizer que as crenças originárias desse encontro entre culturas no Brasil produziu ali uma religiosidade popular que mesmo sendo nominalmente cristã possuía contornos mágicos, Laura de Mello e Souza descreve que, “A religião popular não se preocupa com a salvação eterna, ela busca realização das múltiplas – mesmo que modestas – exigências da vida cotidiana”.[12] Se observarmos a definição de magia em Marcel Mauss, entenderemos os elementos característicos dessa religiosidade popular prática, Para Mauss, “a magia compreende agentes, atos e representações: chamamos ‘mágico’ o indivíduo que efetua atos mágicos, mesmo quando não é um profissional”.[13] Sendo assim consideramos que todas essas crenças possuem elementos que as tornam práticas mágicas. Por exemplo as práticas mágicas descritas no trabalho da antropóloga Liliana Porto, sobre magia e religiosidade popular[14]. A autora descreve que “no Brasil dois processos são comuns na expansão do catolicismo por novas áreas”[15], e que está relacionado a esse sincretismo em que religião cristã e magia se encontram. Para ela, “esses dois processo que muitas vezes ocorrem concomitantemente, são a demonização da religião dos grupos submetidos e sua incorporação como magia no interior do próprio catolicismo.
                  A bruxaria, a feitiçaria e todas as práticas ligadas a magia ao mesmo tempo que são desprezadas serão adotadas no Brasil, resultado do sincretismo.
                  No Brasil data de 1938 o primeiro museu da bruxaria, chamado de ‘arsenal dos bruxos’ que fazia parte de um acervo incrível no depósito da policia do Rio de Janeiro foi tombando pelo IPHAN – Instituo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e foi classificado como ‘coleção afro-brasileira, jogos, entorpecentes, atividades subversivas, falsificações de notas e moedas, mistificação’”[16]. Isso mostra como a magia estava presente no Brasil. Além do mais dentro dessa miríade de religiosidade indígena e afro-brasileira, além do catolicismo, o espiritismo kardecista também encontrou no Brasil espaço para seu crescimento, e é uma das religiões que mais crescem.
                  Agora que temos um panorama histórico da religiosidade no Brasil podemos entender melhor esse fluxo de religiosidades.
                 


[1] MONTES, 1998, p.71
[2] HERVIEU-LÈGER, 2008, p.41-42
[3] SOUZA, 2009, p.181
[4] REIS, 2007, p.78
[5] Foi mantido a escrita original, o código penal está disponível parcialmente para download em: http://www.4shared.com/get/nFflnmMb/Cdigo_Penal_de_1890_Completo.html;jsessionid=64AB2C11BDED11D13C63FB8A15714D07.dc278, acessado em 24/07/2010.
[6] 2005, p.36
[7] Idem, p.37
[8] SOUZA, 2009, p. 77
[9] MOTT, 2010, p.24
[10] Idem, p.25
[11] Idem
[12] Raoul Manselli, op.cit., p.115, apud SOUZA, 2009, p.168
[13] 2007, p.55
[14] Referimos ao livro “A Ameaça do outro: Magia e Religiosidade no Vale do Jequitinhonha (MG)”, em que a autora analisa as praticas mágicas dos moradores de Terras Altas (nome fictício) e mostra como  a magia funciona como uma espécie de corpo estrutural das relações sociais daquela cidade.
[15] PORTO, 2007, p.213.
[16] MAGGIE, 2010, p.38

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