Textos clássicos

3- Isis fala (A metamorfose ou o asno de ouro, Apuléio)


   Perto, mais ou menos, do primeiro sono da noite, despertado com um súbito pavor, vi a grande redondez da Lua resplandecendo e com um resplendor grande, àquela hora saía das ondas do mar. Assim, achando ocasião da obscura noite, que é equipada e cheia de silêncio, também, sendo certo que a Lua é deusa soberana e que resplandece com grande majestade; que todas as coisas humanas são regidas por sua providência, não tão somente os animais domésticos e bestas feras, mais ainda as que são sem alma, esforçam-se e crescem pela divina vontade de sua luz e deidade; também, por conseguinte os mesmos corpos na terra, no ar e no mar agora aumentam com os crescimentos da Lua, agora diminuem, quando ela mingua; pensado eu deste modo que minha fortuna estaria já farta com tantas tribulações e desventuras como me daria; que agora, embora tarde, mostrava-me alguma esperança de cura, deliberei de rogar e suplicar àquela venerável formosura da deusa presente; logo, tirada de mim toda preguiça, levantei-me alegre, e com cuidado de limpar-me e purificar-me, lancei-me ao mar, colocando a cabeça sete vezes debaixo da água, porque aquele divino Pitágoras manifestou que aquele número setenário era de grande maneira aparelhado para a religião e santidade, com o prazer alegre, saindo-me as lágrimas dos olhos, suplicava-lhe desta maneira:"Oh, rainha do céu! Agora você seja aquela Santa Ceres, primeira mãe dos pães, que se alegrou quando achou sua filha, tirado o manjar bestial antigo das bolotas, mostrou manjar deleitoso, que mora e está nas terras de Atenas; ou agora você seja aquela Vênus celestial, que no princípio do mundo juntou a diversidade das linhagens, engendrando amor entre eles e, acrescentando o gênero humano com perpétua linhagem, é honrada no templo sagrado de Paphos, cercado do mar; ou agora você seja irmã do Sol, que com seus remédios, amansando e recreando o parto das mulheres prenhes, criou tantas pessoas, e agora é adorada no magnífico templo de Éfeso; ou agora você seja aquela temerosa Prosérpina a quem sacrificam com uivos de noite e que comprime os fantasmas com sua forma de três caras; refreando-se dos encerramentos da terra, anda por diversas montanhas, arvoredos, é sacrificada e adorada de diversas maneiras; você ilumina todas as cidades do mundo com esta sua claridade mulheril, e criando as sementes alegres com seus úmidos raios, dispensa sua luz incerta com as voltas e rodeios do Sol; por qualquer nome, ou por qualquer rito, ou qualquer gesto e cara que seja lícito chamar-lhe, você, senhora, socorre e ajuda agora às minhas extremas angústias. Levanta minha decaída fortuna, você dá paz e repouso aos acontecimentos cruéis por mim passados e sofridos; baste já, deste modo, os perigos, tira esta cara maldita e terrível de asno; volta-me a meu Lucio, à presença e vista dos meus; e se, por ventura, algum deus eu zanguei, aperta-me com crueldade inexorável, consinta ao menos que morra, porque não me convém que viva desta maneira". Fazendo minhas rogativas e composto meus choros, retornou outra vez o sono a oprimir meu coração sonolento, naquele mesmo lugar onde me jogara, não havia quase fechado bem os olhos, eis aqui, aquela divina cara elevando seu gesto honrado, saiu de meio do mar; em saindo, pouco a pouco sua reluzente figura, já que toda estava fora da água, parecia que ficou diante mim; da qual sua maravilhosa imagem eu esforçar-me-ei de contar, se o defeito da fala humana der-me para isso faculdade, ou se sua divindade administrar-me, abundantemente, cópia de facúndia para podê-lo dizer. Primeiro ela tinha os cabelos muito compridos, derramados pelo divino pescoço e que lhe cobriam as costas; tinha em sua cabeça uma coroa adornada de diversas flores, em meio da qual estava uma redondez plana a maneira de espelho, que resplandecia a luz dele para demonstração da Lua de uma parte, da outra havia muitos sulcos de arados torcidos como cobras e com muitas espigas de trigo por ali nascidas; trazia uma vestimenta de linho, tecida de muitas cores; hora era branca e muito reluzente, hora amarela como flor de açafrão, hora inflamada com uma cor rosada, que, embora estava eu longe, tirava-me a visão dos olhos; trazia em cima outra roupa negra, que resplandecia a escuridão dela, a qual trazia coberta e arremessada por debaixo do braço destro, ao ombro esquerdo, como um escudo pendendo com muitas dobras e pregas.
   Era esta roupa bordada ao redor com suas tranças de ouro, semeada toda de umas estrelas muito resplandecentes, em meio das quais a Lua de quinze dias lançava de si raios inflamados; e como que esta roupa a cercava pendendo de toda parte e tinha a coroa ligada com ela, adornada de muitas flores, maçãs e outras frutas, mas na mão tinha outra coisa muito diversa do que dissemos; porque ela tinha na mão direita um pandeiro com soalhas de arame, atravessadas por meio com suas varinhas, e com um pau deu-lhe muitos golpes, que o fazia soar muito sabrosamente; na mão esquerda trazia um jarro de ouro, da asa do jarro, que era muito linda, saía uma serpente, que se chamava Aspis, elevando a cabeça e com o pescoço muito alto; nos pés divinos trazia umas alpargatas, feitas de folhas de palma. Tal e tão grande me apareceu aquela deusa, jogando de si um aroma divino, como os aromas que se criam na Arábia, e teve por bem de falar-me desta maneira: - Hei-me aqui, venho comovida por seus rogos. Oh, Lucio! Saiba que eu sou mãe e natureza de todas as coisas, senhora de todos os elementos, princípio e geração dos séculos, a maior dos deuses e rainha de todos os defuntos, primeira e única garganta de todos os deuses e deusas do céu, que dispenso com meu poder e mando as alturas resplandecentes do céu, as águas saudáveis do mar e os secretos choros do inferno. A mim só uma deusa honra e sacrifica todo mundo, de muitas maneiras de nomes. Daqui, os troianos, que foram os primeiros que nasceram no mundo, chamam-me Pesinuntica, mãe dos deuses. Daqui deste modo os atenienses, naturais e ali nascidos, chamam-me Minerva cecropea; e também os de Chipre, que moram perto do mar, nomeiam-me Vênus Pafia. Os arqueiros e sagitários de Creta, Diana. Os sicilianos de três línguas chamam-me Prosérpina. Os eleusínios, a deusa Ceres antiga. Outros chamam-me Juno, outros Bellona, outros Hecates, outros Ranusia. Os etíopes, ilustrados dos ferventes raios do sol, quando nasce, os arrios e egípcios, poderosos e sábios, onde nasceu toda a doutrina, quando me honram e sacrificam com meus próprios ritos e cerimônias, chamam-me pelo meu verdadeiro nome, que é a rainha Isis. Havendo mercê de seu desarrumado caso e desdita, venho em pessoa a favorecer-lhe e ajudar-lhe; por isso, deixa já estes choros e lamentações; separa de si toda tristeza e fadiga, que já por minha providência é chegado o dia saudável para você. Assim, com muita solicitude e diligência, entende e cumpre o que lhe mandar. O dia de amanhã, que nascerá desta noite, nomeio a religião dos homens, festejem e dediquem para sempre em meu nome, porque apaziguadas as tempestades do inverno, amansadas as ondas e tormenta do mar, estando já manso para navegar, os sacerdotes de um templo sacrificavam-me um barco novo, em sinal e primazia de sua navegação. Esta minha festa e sacrifício não deve esperar com pensamento profano e solícito, porque por meu aviso e mandado o sacerdote que for nesta procissão e pompa levará na mão direita, pendurando do instrumento, uma grinalda de rosas; assim que você, sem embaraço, nem tardança, alegre, afastando a gente, chegue à procissão confiando em minha vontade, meigamente, quando chegar a beijar a mão do sacerdote, morderá aquelas rosas, as quais, comidas logo, eu despir-lhe-ei do couro desta péssima e detestável besta, em que há tantos dias anda metido; e não tema coisa alguma do que lhe digo, dizendo que é coisa árdua e difícil, porque neste mesmo monte que aqui estou, vê-me presente, disponho deste modo e mando em sonhos ao sacerdote o que tem que fazer em prosseguimento do que lhe digo; por meu mandado o povo, embora esteja muito apertado, afartar-se-á e lhe dará lugar; nenhum, embora esteja entre as alegres cerimônias e festas, espantar-se-á em ver esta cara deforme que traz, nem tampouco acusará maliciosamente, nem interpretará em má parte que sua figura subitamente transforme-se em homem. De uma coisa lhe acordará e terá sempre escondida no íntimo de seu coração; que todo o tempo de sua vida, que daqui em diante viver, até o último término dela, tudo aquilo que vive, deve-o, com muita razão, àquela por cujo benefício volta a estar entre os homens. Você viverá bem-aventurado e viverá glorioso, sem amparo e tutela; quando viver, acabado o espaço de sua vida, e entrar no inferno, ali naquele subterrâneo meio redondo, verá que ilumino às trevas do rio Aqueronte e que reino nos palácios secretos do inferno; você, que estará e morrerá nos Campos Elíseos, muitas vezes me adorará como a sua advogada própria. Além disto, saiba que se com serviços contínuos, atos religiosos e perpétua castidade, merecer minha graça, eu lhe poderei alargar, e a mim somente convém lhe prolongar a vida, além do tempo constituído a seu fado.
   Desta maneira acabada a fala desta venerável visão, desapareceu diante de meus olhos, retornando a si mesmo.

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