Impressões de um debate



Sabemos que nas Ciências Humanas e sociais, a definição e a constituição de um campo de estudos, bem como todos os elementos que nele estão presentes, metodologia, instrumentos de análise, linhas de pesquisa, etc, só se desenvolve efetivamente na medida em que busca dialogar com seus críticos e principalmente reconhecer suas fraquezas. As contribuições que um novo campo de estudos traz, obviamente, são anunciadas aos quatro ventos, porém as fraquezas e limitações do mesmo, são, muitas vezes, deixadas de lado e jogadas para baixo do tapete. Partindo dessa premissa, este post não é nada mais que uma impressão pessoal da discussão em torno dos apontamentos feitos pelo pesquisador da Religião dinamarquês Markus Altena Davidsen em relação ao que ele descreveu como “erros que estão na ordem do dia” no campo de estudos do Pagan Studies. Nesse caso, Davidsen é literalmente o cara que, pretensamente, levanta o tapete e mostra o que estava escondido por baixo. Seu artigo What’s wrong with Pagan Studies? publicado na Method and Theory in the Study of Religion evidencia quatro características que tornam o Pagan Studies um campo problemático. Mas é exatamente aqui, que vemos brotar, num contexto epistemológico, uma semente que pode ajudar este campo de estudo a se tornar mais forte. A princípio devo admitir que concordo com algumas colocações de Davidsen, porém, em outras discordo. As discordâncias em parte provém de um outro texto que serviu como um escudo neste interessante debate acadêmico. Em resposta as colocações de Davidsen, o pesquisador do Neo Paganismo Ethan Doyle White publicou na Pomegranate (diga-se de passagem, um dos alvos da crítica de Davidsen) um artigo intitulado In Defense of Pagan Studies: A response to Davidsen’s Critique.
Neste post busco apresentar, bem resumidamente mesmo, as afirmações, pontos de vista e discordâncias de cada um, colocando quando for possível minha opinião também. Como disse anteriormente é apenas uma impressão pessoal dessa discussão. Apesar de ser um pesquisador do Neo Paganismo em desvantagem (numérica e geográfica) em relação a outros pesquisadores (pelo menos a vanguarda do campo), estou mais perto do que poderia pensar das discussões epistemológicas que estão na agenda do Pagan Studies.
O primeiro artigo que suscitou as discussões sobre os problemas do Pagan Studies foi o de Markus A. Davidsen. Sua questão inicial é formulada tendo como ponto de enfoque o alcance das discussões e contribuições da revista científica Method and Theory inthe Study of Religion:
Se o Pagan Studies não é influenciado pelos insights e reorientações oferecidos pelos acadêmicos que publicam regularmente na MTSR, não significaria, então, que temos falhado em fazer do estudo acadêmico da religião um estudo científico?
Partindo desta questão, Davidsen utiliza o livro Handbook of Contemporary Paganism para fazer sua leitura do campo como um todo. E aqui configura-se o que White considera como um dos problemas da crítica de Davidsen. Utilizar uma obra apenas para referência de todo um campo é um exagero.
Partindo então desta obra, Davidsen levanta os problemas que encontrou no Pagan Studies: O campo, segundo ele, é dominado por perspectivas de essencialismo, exclusivismo, lealdade e sobrenaturalismo.
Logo na introdução, Davidsen anuncia a urgência de suas críticas em quatro provocações:
(1º) O número de acadêmicos pagãos que trabalham de um ponto de vista nativo supera significativamente o de acadêmicos não pagãos.
(2º) Esta superioridade numérica tem permitido o domínio de uma perspectiva nativa no estudo do paganismo isolando-o e protegendo-o das discussões teóricas e metodológicas dentro do estudo da religião em geral.
(3º) O domínio da perspectiva nativa no estudo do paganismo dificulta a identificação de publicações e trabalhos que tem excelência na área pelos estudantes e pesquisadores da religião que não estão familiarizados com o assunto.
(4º) Sendo o paganismo particularmente religioso, os problemas deste campo se mostram como reflexo do problema do estudo acadêmico da religião como um todo.
Percebe-se que sua discussão está relacionada à uma velha critica presente nos estudos sobre religião: O olhar nativista, a contaminação do objeto de pesquisa pela perspectiva religiosa. Este tema é até certo ponto familiar a este que vos escreve, pois na Ciência da Religião há uma discussão parecida em relação aos religiosos e a produção científica. Um exemplo significativo é a crítica feita pelo grande sociólogo Antônio Flávio Pierucci em relação à Sociologia da Religião no Brasil tão bem sintetizada pelo Professor Marcelo Ayres Camurça em seu livro “Ciências Sociais e Ciências da Religião: Polêmicas e Interlocuções”. Segundo Camurça (2008: 114)
O argumento central de Pierucci é que a área da Sociologia da Religião se constitui como ‘impuramente acadêmica’, carente de credibilidade científica perante as Ciências Sociais devido à presença em seu meio de religiosos praticantes e profissionais da religião, que, movidos por interesses religioso – motivações pastorais, orientações eclesiásticas -, comprometem a ‘esfera intelectual autônoma’ do labor científico com uma contaminação religiosa da prática intelectual, que redunda no ‘sacrifício do intelecto que toda religião implica e requer.
Está claro aqui a crítica à produção científica por parte dos religiosos. Porém, como dissemos acima, esta questão configura-se como uma discussão, e com certeza está longe terminar, ao contrário, por enquanto mostra-se até certo ponto ser necessária à própria constituição da área.
                Uma resposta interessante à esta colocação de Pierucci, é da dada pelo professor Breno Martins Campos. Em um capítulo do Compêndio de Ciência da Religião afirma que:
(...) o problema não parece estar no fato de o cientista da religião ser religioso, mas no fato de alguns deles, talvez os mais ruidosos, lutarem em favor de uma causa: a de que somente o conhecimento autóctone, proveniente de certa pertença, pode garantir a verdade da análise do campo. Como se eles colocassem a experiência religiosa como imprescindível para a produção do conhecimento. O problema portanto, está no caso de o religioso proclamar sua vinculação religiosa como condição para a produção do conhecimento  - mais grave é fazer da pertença ao locus científico um recurso  à autoridade para a apologia religiosa (CAMPOS 2013: 194).
Esse exemplo referente à discussão sobre a produção científica dos religiosos serve apenas para nos lembrar de que esta questão não está tão longe assim de nosso contexto de produção acadêmica em relação às religiões. Interessante é perceber a necessidade urgente de se discutir isso dentro do Pagan Studies.
                Ao analisar o Handbook, Davidsen divide os pesquisadores em dois distintos grupos: os nativos religiosos (geralmente pagãos que se tornaram acadêmicos); e os críticos-naturalistas (que pesquisam o paganismo de modo “científico” por uma perspectiva outsider).  Segundo White, na visão de Davidsen, “o primeiro grupo, dos religiosos, pode ainda ser dividido em dois: (a) àqueles que fazem uma aproximação mais descritiva do paganismo e que geralmente é livre de interpretações; (b) àqueles que estão comprometidos com a interpretação, explicação e teologia.
                Como evidenciamos no começo, uma das críticas de White ao artigo de Davidsen é sua utilização de apenas uma fonte como referência do que Davidsen conclui ser sintomático de um campo inteiro de estudos. White descreve que a fonte de referência utilizada “representa uma pequena fração da totalidade da literatura disponível sobre o assunto”. Ou seja, para White, é insustentável como evidência empírica o elemento de amostragem de Davidsen. Concordo em partes com White, já que muitas das obras iniciais do campo, continham sim interpretações nativas e capítulos escritos por religiosos. Aqui, também é importante deixar claro que, como eu disse, estou em desvantagem geográfica dos debates sobre o campo. Ou seja, ao material que tenho acesso, a impressão que dá é que há de fato, se não uma predominância, pelo menos um meio-a-meio de escritos outsiders e insiders. Cito aqui como exemplo a coleção organizada por Chas S. Clifton “Witchcraft Today” vol. 1,2  e 3  e “Magical Religion and Modern Witchcraft” organizado por James R. Lewis. Diga-se de passagem, trabalhos interessantes e bons. Por outro lado, concordo como bem colocou White, há hoje mais de 50 artigos acadêmicos relacionados diretamente ao neo paganismo. E devo acrescentar que esse número aumenta também no Brasil.
                White também crítica o uso e definição por Davidsen do termo “paganismo contemporâneo”. Isto porque o autor descreve que a Wicca, Odinismo, Druidismo e outros ramos fazem parte de um mesmo movimento que começa a tomar forma na década de 1950. Aqui, devo concordar, é óbvio o erro de Davidsen. Vale lembrar que desde o século XIX tem-se reconstrucionismos de variadas formas e tipos (sem contar a celtomania do século XVIII). Acredito que Davidsen devia estar se referindo somente a Wicca como uma expressão mais evidente do neo paganismo em geral. Não sei, mas em todo caso fica como uma defesa ao autor.
                Depois White volta à questão do científico X religioso, discussão eterna esta. Será que o religioso tem um maior compromisso com seu objeto de estudo por ele ser nativo? Para White não. A crítica de Davidsen em relação à lealdade extra acadêmica com o objeto não se fundamenta. White descreve que o Pagan Studies não é um campo exclusivamente pertencente à área de estudos religiosos, mas um campo multidisciplinar com muitos trabalhos antropológicos e etnográficos. Portanto cada caso é um caso em se tratando de pesquisadores e suas crenças.
                Para concluir essa discussão sobre acadêmicos religiosos, acredito que o problema colocado por Breno Martins Campos também pode ser estendido a essa discussão dentro do Pagan Studies. Ou seja, o problema portanto, está no caso de o religioso proclamar sua vinculação religiosa como condição para a produção do conhecimento (CAMPOS 2013: 194).
               
               

               
               

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