Scientification of religion

Aproveitando a vida acadêmica aqui na Universidade da Flórida, tive a oportunidade de assistir a uma palestra com o professor de Estudos Religiosos da Universidade Groningen na Holanda, Kocku von Struckad. Com um currículo extenso é um dos poucos acadêmicos que tem uma produção significativa e influente no campo do Esoterismo Ocidental. Foi presidente da International Society for Study of Religion, Nature and Culture e é um dos membros fundadores de uma das mais importantes sociedades da área dos estudos acadêmicos do Esoterismo, a European Society for the Study of Western Esotericism (ESSWE). Atualmente é presidente da  Dutch Association for the Study of Religion. É autor de vários livros, entre eles um que foi traduzido para o português pela Editora Globo (e já foi comentado por aqui) História da Astrologia.
No dia 31 de março, foi o convidado do professor Bron Taylor para uma palestra que abordou um dos tópicos de seu mais recente livro, The Scientification of Religion: An Historical Study of Discursive Change, 1800-2000 que saiu pela editora De Gruyter (140 dólares!!! salve a biblioteca). A apresentação intitulada Theorizing Shamanism in the Contested Field between Academia, Colonialism, and Religious Practice, é praticamente um resumo do capítulo 8 da obra aqui fichada. von Struckad focou na construção do discurso acadêmico do xamanismo mostrando como se deu a apropriação deste no contexto da Nova Era nos anos 60. Falou das interpretações de Joseph Campbell que forneceram junto com Mircea Eliade uma guinada mística ao fenômeno. Campbell, diga-se de passagem, é quase um guru da Nova Era. A interpretação destes autores de várias formas contribuiu para que, aliada ao contexto de individualização da crença que se nota nas sociedades ditas (pós) modernas, alimentasse a noção de que tais práticas seriam detentoras de sabedorias ancestrais que agora estavam acessíveis a quem quisesse experimentá-las.  Infelizmente em quase duas horas de palestra não foi possível aprofundar nas partes mais teóricas e von Struckard optou por apresentar brevemente como se deu a passagem do discurso acadêmico, ou melhor, a apropriação do xamanismo como uma prática espiritual pós moderna. Depois de uma breve consideração sobre os autores que já falaram sobre isso, von Struckard adentrou especificamente nos exemplos mais evidentes dessa relação entre o discurso acadêmico e o discurso religioso focando três autores que são trabalhados em sua obra, Carlos Castaneda, Joan Hailfax e Michael Harner, considerados como uma espécie de transmissores acadêmicos dessas práticas xamanicas. Obviamente já se pode perceber que o tom da temática de von Struckard perpassa em certo ponto a questão da Ciência como corolário legitimador das diferentes crenças (pós) modernas, um assunto comum entre os pesquisadores da Nova Era.


A literatura xamanica continua a ser amplamente consumida.

Porém o que o que não se pôde aprofundar em sua apresentação, pode-se encontrar em seu livro. The Scientification of Religion não se restringe apenas ao xamanismo mas analisa também os discursos sobre Astrologia, Alquimia, Vitalismo, Cabala e claro, Paganismo.

O livro é dividido em duas partes e oito capítulos, porém antes da primeira parte há toda a teorização de von Struckad. A questão inicial que leva o autor a refletir sobre esse tema está relacionada a questão da secularização. Nesse sentido que ele problematiza: Como se pode descrever adequadamente o lugar da religião nas sociedades europeias depois de um longo processo denominado secularização?
Nos capítulos que se seguem ele tenta convencer o leitor de que as análises discursivas são particularmente adequadas para se começar uma busca por uma resposta a essa questão. Sendo assim, a análise de discurso também fornece, segundo o autor, uma solução ao que ele considera como os tópicos críticos no estudo da Religião de modo geral.
Von Struckad explica que o próprio estudo da Religião é ele mesmo parte do processo do que o autor denomina como Cientificação da Religião. Baseado nesse conceito acredita que é útil olhar para a construção acadêmica da Religião e observar os modos como se dá seu envolvimento com outros sistemas culturais e disciplinas acadêmicas. Este olhar pode ser compreendido como um processo de auto reflexão, que segundo o autor, nossa disciplina tanto necessita (ainda) no começo do século XXI. 
Combinando ideias baseadas na noção de discurso de Michel Foucault e na Construção Social da Realidade de Peter Berger e Thomas Luckmann, von Struckad busca apresentar como todas as nossas formas de agir, sentir, experimentar, perceber está estruturalmente entrelaçada com formas socialmente construídas de conhecimento objetivados e aprovados. É nesse sentido que a análise discursiva sob a perspectiva da Sociologia do Conhecimento buscará reconstruir os processos de construção social, objetivação, comunicação e legitimação das estruturas de significados. O legitimo aqui é o conhecimento gerado no nível das organizações, instituições e atores coletivos. 
Num primeiro momento do livro von Struckad busca explicar também como as recentes discussões na Sociologia do Conhecimento, bem como a análise histórica dos discursos tem fornecido importantes ferramentas de interpretação. 
Kocku von Struckad

Num segundo momento a questão que se desenvolve é de como aplicar estas considerações ao estudo da Religião. Faz questão também de deixar claro que a análise do discurso não é um método em si e acrescenta que está trabalhando no contexto de uma teoria discursiva historicamente orientada que se pauta numa perspectiva foulcatiana e que dentro dessa estrutura geral de foco distingui diferentes métodos que podem ser utilizados, como quantitativos, qualitativos, analíticos etc. Porém coloca uma ressalva: mesmo não sendo a análise de discurso um método e que apesar de sua abertura e amplitude, que pode abranger diversos métodos dependendo da pesquisa que será realizada, esclarece que certos passos são uteis para que se tenha um trabalho analítico concreto. Os passos que o autor segue são detalhados diretamente nas referências de cada argumento e material que são apresentados no decorrer do livro. Basicamente pode se dizer que estes três passos compreendem: (1) determinar  o problema de pesquisa; (2) Selecionar os dados e construir um corpus; (3) Escolher o método adequado para se analisar o conjunto de dados coletados. 
Num terceiro momento von Struckad fornece a definição de cada conceito chave de seu foco que são quatro: o discurso, a análise do discurso, a análise histórica do discurso e um quarto necessário que é o dispositivo, termo cunhado por Foucault. 

1.Discurso: São estruturas comunicativas que organizam o conhecimento numa dada sociedade e que estabelece, estabiliza e legitima sistemas de significados provendo ordens de conhecimento coletivamente compartilhadas em uma coletividade social institucionalizada, afirmação, enunciados e opiniões sobre tópicos específicos sistematicamente organizados e repetidamente observáveis.

2.Análise do discurso: A relação entre práticas comunicativas e a reprodução de sistemas de significados ou ordens de conhecimento, agentes sociais que estão envolvidos, as regras, recursos e condições materiais que perpassam estes processos, bem como seu impacto na coletividade social.
3.Análise histórica do discurso: Explora o desenvolvimento dos discursos em contextos de mudanças sociopolíticas e configurações históricas, fornecendo assim meios de reconstruir a genealogia do discurso. 
4.Dispositivo: Compreende o material prático, social, cognitivo ou infraestrutural normativo na qual um discurso se desenvolve.

Após a elucidação dos conceitos que serão trabalhados o autor passa para a a definição de Religião. Como bem coloca, definições de Religião são afirmações e enunciados que atribuem significados à coisas que fornecem ordens de significados. Neste sentido tais definições contribuem para um discurso sobre religião. Sendo assim, as próprias definições são objetos de análises discursivas, muito mais do que ferramentas conceituais. 
Permanecendo a Religião como um significante vazio que pode ser ativado com definições, significados, práticas comunicativas não compromete a clareza do objeto, nem o rigor acadêmico do estudo da Religião, apenas desloca a obrigação de definir nosso objeto passando do nível prático comunicativo para o nível de reflexão discursiva. Nesse gancho o autor define Religião como àquilo que se refere a contribuições ao discurso religioso, e RELIGIÃO (tudo com letra maiúscula mesmo, como é enfatizado no livro) como àquilo que ser refere ao tópico discursivo, ou seja, a organização social do conhecimento sobre Religião. Da mesma forma CIÊNCIA é definida como a organização societária do conhecimento sobre Ciência. 
Como foi dito, von Struckad descreve que não devemos considerar a análise de discurso como um método. Mais do que isso, deve ser vista como uma perspectiva de pesquisa. Uma perspectiva que deve ser encarada como um empreendimento interpretativo, uma estratégia hermenêutica para investigar a organização do conhecimento em uma determinada situação social histórica.
 Interessante também é como von Struckad busca argumentar que as construções binárias, tais como religião e ciência, ocidente e oriente, ciência e pseudociência devem ser abandonadas se quisermos entender as estruturas dinâmicas nas quais estes conceitos receberam seu significado. É preciso deixar claro que o autor não quer com isso dizer que estas construções binárias são, em termos gerais, piores, mas apenas que não se deve confiar em seu poder de explicação e que devemos investigar criteriosamente as realidades que estas construções binárias criam mais do que descrevem. 
Sendo assim, se deixarmos para trás estas as construções binárias como categorias analíticas e olharmos para sua capacidade de criar identidades através da atribuição de significados, teremos que encontrar um novo vocabulário mais adequado para servir como um instrumento analítico em nossa interpretação de processos históricos. O vocabulário que vem com a análise discursiva fornece tal instrumento. 
As constelações discursivas que o autor propôs estudar que compreendem o século XIX e XX demostram claramente o forte impacto dos discursos religiosos na sociedade contemporâneas europeias. 
No final, sua análise tem uma dimensão descontrutiva e construtiva. A desconstrução repousa na avaliação crítica e contextualização do que é colocado como sendo um conhecimento histórico e acadêmico. O elemento construtivo é a reavaliação das variações do discurso que junto formam o lugar cultural da religião e da ciência na Europa contemporânea.
Apesar de suas poucas páginas o livro apresenta argumentos interessantes construídos através de uma análise bibliográfica constitutiva de uma contribuição pontual para a formação das vertentes espirituais alternativas mais influentes da (pós) modernidade. Cada capítulo mereceria um texto a parte. No final, gostei da abordagem do autor, principalmente no capítulo sobre o Paganismo, que obviamente muito me interessa. Mas esse comentário fica para a próxima.

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